segunda-feira, 1 de abril de 2024

SOMOS TODOS ZARASTRUSTA

 

    Faravahar, o “Sol Alado”


Falar sobre Ahura Mazda sem referir o Zoroastrismo, Zarastustra ou Zoroastro, o Culto Solar, do Fogo e de Mitra, é ter uma visão unilateral e truncada de culturas, de que somos ainda herdeiros, pertencentes a um conjunto de povos de uma imensa região geográfica que se estendia desde o norte da Índia, Tasjakistão, Afeganistão, Irão, Assíria, Mesopotâmia (o Crescente Fértil), a antiga Pérsia. Convulsionada por milénios de lutas fratricidas, de guerras intestinas e de invasões e fusões de povos e etnias. Contudo, nada obviou a que as tradições culturais desta amálgama de populações da Ásia central e médio oriente (indo-iranianos), fundamentadas nas tradições milenares védicas (civilização do Vale do Indo), se reflectissem posteriormente em todas as teologias e teogonias, desde os mitos gregos, ao império romano até aos rituais exotéricos actuais do catolicismo ou dos ocultos cabalísticos traduzidos em metáforas de tratados alquímicos como o “Rosário dos Filósofos”, - Rosarium philosophorum sive pretiosissimum donum Dei, editado no século XVI no De Alchimia Opuscula complura veterum philosophorum.

Como princípio monista já presente no ramo extinto do Zurvanismo, emanação de Zeruan Akerna, o “Um”, o “Único”, o “Tempo Sem Limites”, o Chronos grego), Mazda (o “Onisciente”, a designação mais antiga) e Ahura (o “Governador” introduzido por Zoroaster Spitāma), ou Ormuzd (ao reunir as duas designações no persa), representa simbolicamente a deidade criadora e sustentadora do Universo, que no Hormazd Tasht dos Yasht (abreviadamente Yt), - colecção de 21 hinos, supostamente escritos por Zoroastro, cada um invocando uma deidade zoroastriana na linguagem antiga Avestan ou língua “gáthica”, - aparece referido por mais de vinte títulos, entre os quais o “Eu Sou”, curiosamente também presente na Cabala hebraica, um dos sete nomes de Deus.

Zoroastro ou Zarathushtra, tal como Manu e Vyasa na Índia, é a designação da reencarnação de vários avatares (serão 13 os mencionados no Dabistãn [1], de acordo com H. Blavatsky), o último nascido no fim do segundo milénio a.C., algures na Ásia Central entre os actuais Uzbekistão e Tasjakistão. Esta linha de profetas citada pela primeira vez por Aristóteles (datando-o de 9600 anos antes de Platão) seria o sétimo Zoroastro. Outro avatar teria surgido 4000 a.C.. Segundo Annie Besant o primeiro Zoroastro dataria de 20.000 anos atrás (Zoroastrianism, p. 7; Four Great Religions, 1897) e de acordo com as escrituras Zoroastrinas, o Avesta, ter-lhe-iam sucedido Gayomard, Hoshang, Tehmuras, Jamshid, Faridun. Finalmente Zaratrusta Spitāma terá sido o último e manifestar-se-á no “Julgamento Final”.

Impossível deixar de referir que a antiga língua Avestan tem forte afinidade linguística e histórica com o sânscrito Rigueveda e pressupõe-se ser mais antiga do que a língua usada para escrever o resto do Avestá ou “palavra da vida“, o "avéstico mais recente". Interessante notar que o termo ahura (governador) no Avestan está linguisticamente relacionado com asura (trevas), termo hinduísta para designar os “anjos caídos na Terra”, entre os quais figura Mithra – o correspondente védico e hinduísta Mitra ou ainda Maitreia, o Bodisatva na tradição budista que surgirá depois de Sidarta Gautama.

Estas afinidades permitiram estabelecer a existência de uma origem cultural e linguística comum destes textos.

De realçar a ligação posterior à Ásia Menor e á Anatólia através da tradição mitológica grega Avestá Mithra conduzindo às várias variantes com Apollo, Helios e Hermes (sempre presente o Culto Solar) e ainda mais tarde (146 a.C.) à figura dos Mistérios romanos Mitraicos ou Culto de Mitra. Uma ligação profunda ao dualismo zoroástrico (sempre a presença da luta entre os pólos opostos, entre o bem e o mal, entre o espírito e a matéria).

O culto Mitraico romano envolve sempre a tauroctonia simbólica e a partilha de um banquete com o deus Sol: Os açorianos Terceirenses talvez sejam os últimos guardiões deste ritual, sem o saberem, com as touradas e os banquetes do “5º touro”, festejam Mitra [2].

Ahura Mazda, representado pelo Faravahar, símbolo solar do pré-Zoroastrismo , o “Sol Alado”,associado à divindade e à realeza no antigo Egipto dinástico, onde representava Hórus na cidade de Edfu, estendia o seu simbolismo universal também na Mesopotâmia, Anatólia e Pérsia.

"Sol Alado de Tebas” (Egyptian Mythology and Egyptian Christianity por Samuel Sharpe,1863)

O símbolo solar encarnado materialmente no ser humano sob a designação de “fravashi” ou o espírito individual (Atma, em Avestan “aquele que foi escolhido para exaltação”), onde na dimensão material irá sofrer as provações desenvolvidas pela dualidade da luta entre o bem e o mal. Porém no colapso material do corpo físico e ao quarto dia após a morte, a alma ou corpo étereo (“urvan”) separa-se do “fravashi” incorporando-se na unidade dimensional de Mazda, onde acumula as experiências e a sabedoria das sucessivas reencarnações.
No zoroastrismo todas as coisas animadas ou inanimadas possuem uma centelha deste espírito “fravashi” que evolui gradativamente de acordo com a complexidade da matéria inorgânica a orgânica como nela se acumulasse a energia solar radiante sob a forma de ligações electroquímicas sempre mais complexas.
Nos tempos correntes “O Leão e o Sol” é um dos símbolos principais do Irão. Esteve presente na sua bandeira nacional até à revolução de 1979 que instalou a Republica Islâmica.

“O Leão e o Sol” na bandeira nacional do Irão


 

Bandeiras do Tasjakistão (à esquerda) e do Uzbekistão


Como já referimos, Zurvã ou Zeruan Akerna é o pai dos dois opostos que representam o Bem, Ahura Mazda e o mal Arimã. De Ahura Mazda (o Logos) emanam por sua vez dois aspectos do próprio, outra dualidade, também de carácter polar e masculina: Spenta Mainyu e Angra Mainyu, que representam, de uma maneira geral, a partilha entre duas dimensões, a do Espírito e a da Matéria, a da Vida e a da Forma, Luz e Trevas, representada na constituição septenária humana e da terminologia teosófica, a natureza dual da mente - de um lado Budhi-Manas e do outro Kama-manas. 

A completar o esquema dualístico, outra deidade fazendo parte da trindade zoroastriana, agora de carácter feminino, é designada por Ārmaiti, a “Sabedoria Criativa” através da qual foi concebido o Universo.

No Gnósticismo, Sophia (Sabedoria) era a sizígia divina de Cristhus (os Éons complementares feminino-masculino, as forças simétricas da natureza) e não apenas uma simples palavra significando sabedoria, tal como nas escrituras zoroastriana do Avesta.

É atribuída à constituição septenária zoroastriana esta estrutura: Do lado direito de Ahura Mazda e com carácter masculino estão: Vohu Manah ou Vohūman correspondendo a Budhi; seguida por Asha Vahishta e por Khshathra Vairya ou Kshatraver, o Manas e Kama-manas.

Do lado esquerdo de Ahura Mazda e com carácter feminino têm assento Spenta Ārmaiti ou Spendarmad representado possivelmente o plano astral; Haurvatāt ou as energias associadas à vitalidade ou ao Prana, e finalmente Ameretāt ou etéreo fisíco.

Tendo em conta o próprio Ahura Mazda (o plano Átmico), somam sete os diferentes aspectos desta cosmogonia dos quais sobressaem sempre os pólos opostos - Spenta Mainyu versus Angra Mainyu. Estes opostos ou Deva, linguisticamente relacionados com os devas sânscritos, tomam também designações: Āka Manah, Indra, Saurava ou Sauru, Nāonghaithya ou Taromad, e os gémeos Tauru e Zairicha. Lembremo-nos que esta organização dual está presente em Pistis Sophia onde o Karma, “a matéria do Barbelo” que a “Potência de Sabaoth”, designação aplicada para “o Todo Poderoso”, a “Verdade”, é a informação relevante dos “arquivos akáshicos” que definem o futuro. Assim, Sabaoth, que “saiu da Região da Direita”, o Futuro, lança esta informação “a todas as Regiões daqueles da Esquerda”, que constituem o Passado das acções humanas, de modo que a “Veste de Luz” passa a estar em consonância com o respectivo Karma. Cfr. Pistis Sophia, final do Capítulo 63, pp 159.

Segundo Annie Besant o primeiro Zoroastro revelou a natureza sagrada do Fogo e a sua importância nos rituais zoroastrinos quando invocado a partir do profundo brilho do “akasha”, o Agni ou a antiga designação védica Ātar ou Āthrā. As relações são mais que muitas e evidentes!

Exceptuando Ahura Mazda, a estrutura em pólos opostos gera hostes de “demónios”, que parecem corresponder na sua descrição e características aos “elementais” e às suas actividades naturais ou às “Potencias” em Pistis Sophia. Por esta razão o Fogo (um dos 4 elementos alquímicos), um dos filhos de Ahura Mazda e presente em todos os templos, adquire uma importância central no zoroastrismo. Tal como no hinduísmo, o Fogo é o mensageiro entre o céu e a terra e constitui um elemento sagrado. 

O ritual da manutenção do Fogo sagrado pelas Vestais e o culto a Vesta que presidia ao Fogo doméstico em todos os lares romanos, foi a expansão desta tradição até a estes tempos tardios.

Ahura Mazda adquire um papel central na cosmogonia zoroastrina. Esta, apresenta-se dividida em quatro períodos de ciclos de 12.000 anos correspondentes a signos do Zodíaco.

Tudo se desenrola em torno de polaridades, entre Spenta Mainyu (a Luz) e Angra Mainyu (as Trevas). No primeiro ciclo Angra ou Āhriman mantém-se inactiva, mas no segundo dá-se a criação dos primeiros átomos, da terra, da água. do céu, das plantas, dos animais e dos seres humanos e em consonância dos Devas por Angra Mainyu que se opõe a Spenta. Aqui os “fravashi” encarnam no homem para se oporem a Angra. Durante o terceiro período, chamado de “Primeiro Período Humano”, as forças de Angra vão sendo substituídas pelas forças de Spenta. Então no último período dar-se-á o “Julgamento Final” por Ahura Mazda com o advento do avatar Zarathushtra Spitãma em que as forças do Bem derrotam as do Mal. Uma cosmogonia onde o Cristianismo primitivo foi beber. Em Pistis Sophia, o “Éon Cristhus” irá também restaurar a harmonia no mundo dos Éons, curando a “doença” no mundo material em consequência da catástrofe na ordem ideal, dando ao homem o conhecimento e a Sabedoria que irá resgatá-lo do domínio da matéria e do mal.

Tal como Dante Alighieri na sua Divina Comédia o Zoroastrismo possui um texto religioso, o livro de Arda Viraf (talvez Dante se tenha inspirado neste texto), onde um zoroastrista viaja pelo mundo dos mortos para provar a justeza da doutrina de Zoroastro. Para tal este viajante, Wirãz, toma um alucinogénio, uma mistura de vinho, canabis e Haoma ou Soma, que liberta a sua alma até às outras dimensões e onde é esperado não pela bela Beatriz, mas pela bela Dên, que igualmente representa a fé e a virtude. Do mesmo modo que Dante é guiado pelo divino Vergílio, aqui a companhia é feita pelo divino Srosh. Deste modo, depois de atravessar a ponte Chinvat que separa os dois mundos, é conduzido aos lugares reservados aos virtuosos e fiéis à doutrina, percorrendo o caminho das estrelas, o da Lua e o do Sol. Aqui encontra Ahura Mazda que lhe mostra as almas dos abençoados, vivendo realidades virtuais ideais mas semelhantes às vidas terrenas. Depois desce, guiado até aos infernos onde lhe é mostrado os sofrimentos atrozes infligidos aos fracos pecadores. Deste modo concretiza-se o objectivo de Ahura Mazda quando lhe transmite que o Zoroastrismo é a única via correcta para uma vida próspera e livre de adversidades.

Chegados até aqui não poderíamos esquecer os Parsis e a sua ligação à Teosofia que é imensa e genética. Considera-se o Zoroastrismo a religião oficial dos Parsis. 

No Glossário Teosófico [3] diz H. Blavatsky que Ormazd ou Ahura Mazda (Zend-Avesta) é o deus dos zoroastristas ou dos parsis modernos. Simbolizado pelo Sol, como sendo a “Luz das Luzes”. Esotericamente, ele é a síntese de seus seis Amshaspends ou Elohim, e do Logos criador.

O Coronel Olcott, fundador da Sociedade Teosófica com H. P. Blavatsky, escreveu nos seus diários constituídos por seis volumes, extractos de “Old Diary Leaves”, que a comunidade Parsi, na Índia, sempre votou grande afecto e amizade com a Sociedade Teosófica, colaborando e apoiando materialmente as suas iniciativas. Tanto Hindus como Parsis envolveram-se directamente na edificação do ramo da Sociedade Teosófica em Bombaim. Foram proeminentes teosofistas zoroastrianos, Navroji Dorabji Khandalavala, Kavasji Merwanji Shroff, Sorabji J. Padshah, Bahman Pestonji Wadia e P. Iyaloo Naidu entre muitos outros.


Templo Zoroastriano de Adyar. Fonte: Arquivo da Sociedade Teosófica Americana.


Sede da Sociedade Teosófica em Adyar desde 17 de Novembro de 1882


No decorrer dos anos este centro teosófico transformou-se num lugar de estudos e meditação para todas as religiões tendo sido criados um templo Hindu Bharata Samaj, um budista, outro Jainista e outro Sikh, bem como a igreja católica de São Miguel de Todos os Santos, uma mesquita, um templo zoroastriano e uma sinagoga judaica sem esquecer ainda um templo maçónico. Toda esta importante estrutura física consubstanciava um dos princípios teosóficos promotores do estudo comparado das religiões procurando eliminar a ignorância, a intolerância e promover a paz.

É assim, que no volume 1 da colecção Agnimile do Círculo de Estudos Orientais da Nova Acrópole, 1ª edição 2019, “A Chave para a Teosofia” p.59, Helena Petrovna Blavatsky define os propósitos da Teosofia:

“1. Formar o núcleo de uma Irmandade Universal da Humanidade sem distinção de raça, cor ou credo.

2. Promover o estudo das Escrituras Árias, entre outras, das religiões e das ciências do Mundo, e reivindicar a importância da literatura Asiática Antiga, nomeadamente, aquela das filosofias Brãhmânica, Budista e Zoroastrista.

3. Investigar os mistérios ocultos da Natureza sob todos os aspectos possíveis, especialmente os poderes psíquicos e espirituais latentes no Homem. Estes são, em linhas gerais, os três principais objectivos da S. T.".

 

Notas

[1] O Dabestãn ou “escola das religiões” é uma obra persa datada de 1655 d.C., que examina e compara as religiões Abrahamicas, Dhármicas e outras do século XVII da Eurásia e do sudeste, cuja autoria se atribui com alguma incerteza a Mollah Mowbad.

 

[2] Na ilha açoriana da Terceira, celebram-se anualmente entre o dia 1 de Maio e até final de Setembro, dezenas de touradas à corda, onde são “corridos” 4 touros seguindo-se o conhecido na gíria popular por “quinto touro”. Este “5º touro” consiste em banquetes realizados por particulares mas abertos à participação da comunidade num acto de amplo convívio e celebração fraternal. Estas festividades marcam um período de 6 meses e constituem globalmente um acontecimento inequivocamente identitário do povo terceirense, que cimenta o “espírito” festivo e democrático que o caracteriza. Estas celebrações unem sempre um acto “sacrificial” simbólico do touro a um banquete de partilha, tal como no culto mitraico romano.

 

[3] Helena Blavatsky, Glossário Teosófico, Edição CLUC – Centro Lusitano de Unificação Cultural, p. 273.

 


O Demónio de Maxwell

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