sábado, 25 de junho de 2022

Paralelos entre a Teosofia e a Ciência no século XXI

 

Fonte: Pixabay License


A Cromo Dinâmica Quântica (QCD), constitui hoje um dos pilares da descrição física do Universo através da teoria quântica dos campos. Além da interacção electromagnética, tanto a interacção fraca quanto a interacção forte são descritas por teorias quânticas de campos, que reunidas formam o que conhecemos por Modelo Padrão que considera, tanto as partículas que compõem a matéria fermiónica (quarks e leptões) quanto as partículas mediadoras de forças (bosões de gauge), atribuídas como excitações de campos fundamentais.

A teoria quântica dos campos transforma a matéria, constituída por hadrões e leptões, bem como os condutores da força que os mantém unidos, os bosões mensageiros, como excitações de um campo fundamental de energia mínima não-nula que define o vácuo.

Os campos quânticos gerados pelas forças nucleares forte e fraca presentes nas interacções entre os protões e neutrões, mantendo a coesão dos núcleos atómicos, não podem desaparecer depois que os núcleos, os protões e neutrões ou os próprios quarks deixam de fazer parte do organismo vivo: a informação contida nestes campos quânticos, somatório das energias individuais das partículas até ali partilhadas entre si no ser vivo, em que claramente o todo é maior que a soma das partes, não colapsa e continuará a existir no espaço, no vácuo encarado agora como estado de baixa energia, ele próprio aliado ao tempo, e considerado campo quântico fundamental que se contem a si próprio, por certo de outra natureza que não a vectorial ou a escalar inerentes ao espaço de Hilbert. No conjunto formam como um “emaranhado” de forças co-variantes sobrepostas tal qual extra dimensões flutuantes ocupando o mesmo ambiente tetradimensional, à escala de Planck.

A compreensão da natureza das forças nucleares forte e fraca tem constituído, por mais de 80 décadas, um dos maiores problemas da física moderna, o chamado “problema intrínseco”. Para tanto foi criada uma efectiva teoria de campo (EFT) que propõe entender as forças nucleares como interacções residuais, tais como as forças de van der Walls entre átomos, neste caso aplicadas entre quarks mediadas por gluões e cujo objectivo é manter os nucleões como estrutura estável da matéria.

Em termos gerais na mecânica quântica o Universo é descrito por três entidades matemáticas:

a) Por um objecto Н designado Hamiltoniano que descreve a energia total do sistema;

b) Por uma matriz de densidade que estabelece a relação entre todos os estados quânticos do sistema;

c) Pela equação de Schrodinger que descreve a influência do tempo.

No entanto este modelo de análise conduz a um número infinito de soluções matemáticas.

Isto leva-nos a pensar que a percepção clássica tridimensional que temos do Universo é apenas uma das mil e uma formas pela qual o nosso cérebro interpreta o colapso da função de onda, por certo a forma que garantia a sobrevivência, a forma desenvolvida e aperfeiçoada durante éons de tempo. No entanto outras formas existem não perceptíveis nesta realidade dimensional e que representam outras probabilidades consideradas exóticas pela matemática. É aqui que se fundamenta a concepção hinduísta de “Maya”.

 

É assim que depois que os organismos biológicos terminam as suas funções vitais, colapsa e é dada por finda toda a rede de actividade electromagnética que corporiza o “Prana” que assumia a forma de uma autêntica cápsula magneticamente polarizada revestindo exteriormente e abrangendo alguma distância em torno do ser vivo. Nesta circunstância também as forças nucleares persistem temporariamente organizadas em matriz, proveniente do “entanglement” ou emaranhamento quântico anteriormente estabelecido. Esta persistência prolonga-se por algum tempo (crê-se que normalmente 2 a 3 dias) enquanto as ligações moleculares dos componentes biológicos se vão degradando aos poucos.

É sabido que no exercício das funções vitais, as bio-moléculas tomam configurações funcionais de acordo com o electromagnetismo imanente das suas estruturas que as configuram geometricamente como “fechadura/chave” nos mecanismos actuantes dos processos Receptores/Efectores que constituem as bases do metabolismo celular. Assim, as polaridades electromagnéticas das bio-moléculas, que estão na base da sua configuração activa, surgem devido à deslocalização e rearranjo das orbitais atómicas criando fenómenos de natureza quântica essenciais à vida, tais como os fenómenos conhecidos como efeito túnel, “entanglement” e superposição. Assim se conclui que são as leis da física quântica, ainda que na actualidade mal compreendidas, que regulam as funções vitais, o ARN e o ADN e as sínteses proteicas, a função das proteínas, as hormonas, a regulação dos genes, a divisão e diferenciação celulares e a morfogénese na formação dos tecidos e órgãos.

Todos os organismos emitem radiação lumínica de baixa intensidade e na altura da morte essa radiação é cerca de 1000 vezes mais potente do que aquela emitida durante condições normais em vida. Este “deathflash”, como é conhecido, é independente da causa da morte e reflecte em intensidade e duração o desenvolvimento do fenómeno da morte em si mesma (1).

Entretanto as duas “forças” nucleares, encaradas como campos quânticos de informação organizada, formam respectivamente o “Astral” ou “Lingasarira” e o “Manas Inferior” ou “Kamarupa” que no seu conjunto formam o “fantasma Kamarúpico”, pois ao conterem a informação do ser que foi vivente, são transportadoras de propriedades ou atributos, “Skandhas” em número de cinco no sistema esotérico Budista do Norte, que caracterizavam, quando vivo, os instintos animais e hábitos, sob a forma de paixões e desejos: os contributos exteriores para modelar e accionar a transmissão fenoménica ligada às características Epigenéticas. A própria informação da forma tri-dimensional do organismo (“Rupa” ou corpo) poderá continuar a existir, tal a potência da informação das forças nucleares forte e fraca que apesar de agirem a nano distâncias, 10--14 e 10-18 metros respectivamente, no interior dos núcleos atómicos, antevêem possuírem contudo um âmbito de actuação muito mais alargado. Ou seja, sendo 10 milhões de vezes mais fortes que as ligações químicas que mantêm unidos os átomos nas moléculas e não produzindo no entanto efeitos visíveis nos fenómenos do nosso dia-a-dia, formam contudo por distorção ou ruptura do espaço-tempo uma outra dimensão de natureza quântica, o designado sânscrito “Kamalokas” ou o “Limbus”, o submundo “Amenti” dos Egípcios ou o Hades da antiga mitologia grega onde iam desaguar todos os rios, também em número de cinco – o Estige, o Aqueronte (rio da dor), o Letes (rio do esquecimento), o Phlegethon (rio do fogo) e o Cocyto (rio das lamentações).

Esta dimensão de natureza quântica será assim povoada pelos “Eidolas Astrais”, tanto “Elementares” quando relativos fundamentalmente a seres vivos inferiores ou “Cascas Kamalokicas” quando referidos a seres antropóides mais evoluídos e humanos.

Os rios aqui encarados como idealização de fluxo continuamente evolutivo e transitório na sua constituição, sede emergente de fenómenos locais em “entanglement” permanente, tal como um meio ondulatório de probabilidades. Nos rios, os espaços (as margens) ditam às massas (águas) como se comportarem e as massas (águas) ditam aos espaços (margens) como se apresentarem. O mesmo acontece no Espaço e no Tempo einsteiniano onde ambos têm uma natureza relativa e não absoluta newtonianas, e por fim fazem a ligação entre o micro e o macrocosmo, entre o mundo quântico e o cosmos.

Ora, é este Espaço-Tempo, veículo que se contem a si próprio, encarado agora como uma dimensão quântica pela actual teoria da gravitação em laços e designada “Buddhi” no sânscrito, que vai albergar a informação Holo-morfogenética ou o “Manas Superior”, fazendo a transição entre o “Kama Manas”, “Manas Inferior” ou “Kamarupa” sede da manifestação das forças nucleares fracas que se manifestam materialmente nos fenómenos ligados ao mundo da matéria, no decaimento radioactivo e no funcionamento de todas as estrelas, de que depende toda a vida no planeta. Esta transição é conferida pelo Bosão de Higgs ao conferir massa à matéria – considerada pela metafísica como a descida do espírito na matéria, o “Antakarana”.

Esta estrutura Holo-morfogenética ou “Manas Superior” é residência da informação utilizada pelo “Karma” sob a forma de qubits ou “Lipikas” sânscritos, impressos nela e resultantes no ser humano dos processos mentais da consciência, acumulados durante a vida e nos seres inferiores pelos processos automáticos mais comuns ligados à sobrevivência instintiva e que eticamente se poderiam traduzir em méritos e desméritos ou simplesmente nas causas, fonte de simetrias, necessárias ao desenrolar da entropia (causa vs efeito) como processo geral e universal do “Dharma”, estendendo-se por ciclos de vida de “Brahma”. Estes possuem dimensões de tempo titânicas à nossa escala, compostos por um ciclo “manvantárico”, 311 040 000 000 000 anos terrestres, e outro ciclo denominado “pralaya” de igual duração, perfazendo uma vida de “Brahma” ou um período de actividade do Universo.

O “Manas superior” como estrutura fractal holomórfica dependente da estrutura quântica em “laços” do espaço-tempo ou ”Budhi” onde realiza a sua existência, e que reproduz de forma fractal, representa no seu conjunto o mundo dos “Arquétipos” platónicos ou o “Akasha” sânscrito, a que por vezes temos acesso e que classificamos comummente como intuição. Esta estrutura quântica, agora designada por “espuma de spins”, possui a particularidade de ser influenciada pelo “Manas Inferior” ao poder adquirir e armazenar através dele, influências de natureza informativa – energia sob a forma de momentum, que irá moldar aspectos kármicos posteriores durante a evolução através dos processos reencarnatórios. No entanto enquanto esta última colapsa com o tempo após a morte, as outras permanecem e são veículos de manifestação do “Atma”.

O “Atma”, “Eu Superior” ou “Espírito” poderá traduzir-se por um campo quântico de informação perene, a verdadeira consciência, em “entanglement” permanente e sincronizado com o “Absoluto” infinito, o “Apeiron”, parcela da Consciência global de que faz parte.

O seu conjunto formal – “Atma”, “Budhi” e “Manas”, integram a tríade que tudo envolve e ordena, e da qual ciclicamente renascemos para as quatro dimensões, fenómeno incontornável de entropia, a grande ilusão: “Maya”. 

Será importante referir, ainda que de modo muito sucinto, que muitos pensadores e investigadores, situados na área da Ciência, têm sido atraídos pelo conceito que liga informação como consciência e as propriedades quânticas da matéria. Em 2015 o cosmólogo sueco Max Tegmark lançou a ideia da informação como consciência, unindo conceitos distribuídos pela cosmologia e filosofia, ao apontar que a consciência seria um “estado de matéria” a que denominou de “perceptronium” onde a informação estaria organizada de modo a revelar a subjectividade e a consciência (2).

Outros, como o físico teórico Erik Verlinde, da Universidade de Amesterdão, que em 2011 recebeu o prémio Espinosa, defendem que o espaço-tempo é uma rede de bits quânticos, lançando a hipótese de que a gravidade não é uma força fundamental da natureza mas que emerge das interacções de um campo quântico de informação que permeia todo o Universo e constituinte possível da matéria escura (3). Koenraad Schalm, físico teórico da Universidade de Leiden, que estuda a teoria das cordas e as suas ligações aos modelos da física das partículas e da cosmologia em particular, defende a mesma opinião.

Hassan H Mohammed, outro físico teórico da Universidade de Basrah, afirma num dos seus trabalhos (4): “A evidência científica conduz à conclusão de que a mecânica quântica prediz a existência de uma alma ou de uma consciência. Esta conclusão baseia-se no processo material objectivo, tal como os processos neurais cerebrais e concomitantemente a experiência subjectiva consciente. A reversão do tempo na informação quântica de que a metafísica da alma e as fracas medições na mecânica quântica levam à conclusão de que a metafísica da dualidade corpo-alma, pode ser descrita a partir das leis da natureza e da física e que a metafísica pode ser concebida como aspectos da realidade externa do nosso universo e da realidade interna da nossa mente.”

Ainda como afirma o físico teórico Carlo Rovelli (5): “ Os campos quânticos covariantes representam a melhor descrição que temos hoje do apeiron, a substância primordial que forma o todo, colocada em hipótese pelo primeiro cientista e primeiro filósofo, Anaximandro.”

Esta aproximação à metafísica, eivada de concepções cartesianas e de pensamento objectivo próprio do tradicional método científico, representa conquistas no próprio campo metodológico assertivo da Ciência, constituindo deste modo um passo importante na compreensão de alguma fenomenologia característica desta área do conhecimento, que agora abre caminho a custo por entre a crise actual instalada na física, na biologia, na cosmologia e na astrofísica, paradigma inelutável da Síntese que se aproxima.


“O que é esta vida que corre

Em nossos corpos como fogo?

O que é?

 

A vida é como ferro quente,

Prestes a ser derramado.

Escolha o molde,

E a vida o abrasará.”

 

Mahabharata

Notas e bibliografia


(1) Slawinski, J., Electromagnetic radiation and the afterlife. J Near-Death Stud 6, 79–94 (1987). https://doi.org/10.1007/BF01073390.

(2)  M. Tegmark, Consciousness as a state of matter, Chaos. Soliton & Fractals, 76, pp. 238-270, 2015. http://dx.doi.org/10.1016/j.chaos.2015.03.014.

(3) Verlinde, E., On the origin of gravity and the laws of Newton. Journal of High Energy Physics, 2011, 29(2011). doi.org/10.1007/JHEP04(2011)029.

(4) Mohammed, Hassan, Does Quantum Mechanics Predict the Existence of Soul? Basrah University, December 2019. doi:10.24018/ejphysics.2019.1.1.3.

(5) Rovelli, Carlo, A Realidade não é o que parece – a natureza alucinante do universo, Contraponto, 1ª Edição, Outubro 2019.

 Blavatsky, H. P., A Doutrina Secreta, Volume IV, Editora Pensamento, 2019.

Blavatsky, Helena Petrovna, A Chave para a Teosofia, Fundamentos da Religião - Sabedoria, volume 1, Edições Agnimile, Nova Acrópole, 2019.

Buck, William, O Mahabharata, Segunda edição, S. Paulo: Cultrix, 2014.


João G. F. Porto, Ponta Delgada, 24 de Junho de 2022.


sábado, 4 de junho de 2022

A Eneida (Aeneis) e a Divina Comédia: uma leitura.

Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Vergilio_mosaico_de_Monno_Landesmuseum_Trier3000.jpg


Publius Vergilius Maro, (70 - 19 a.C.), é o autor da Eneida, poema que narra a fundação de Roma na região do Lácio por Enéias, herói troiano que escapara do desastre da queda da cidade de Tróia, assim ligada hereditariamente ao surgimento do povo italiano. Roma absorveu muito da cultura grega e isso é evidente na influência que a Ilíada e a Odisseia de Homero na composição dos doze livros que compõem a Eneida.

Vergílio, que pertenceu ao grupo dos “poetas alexandrinos” que buscavam o conhecimento nos poetas gregos do século 3 a.C., é considerado o maior poeta latino. Dante Alighieri, na Divina Comédia, atribui-lhe a missão de ser seu guia no Inferno e no Purgatório.

Dos “poetas alexandrinos” que influenciaram mais os romanos destaca-se Calímaco (300 - 240 a.C.), designado por Ptolomeu II bibliotecário durante 20 anos da Biblioteca egípcia de Alexandria e a quem é atribuída a publicação de mais de 800 livros; Apolónio de Rodes (295 - 215 a.C.) sucessor de Calímaco na direcção da Biblioteca de Alexandria e autor da “Argonautica” onde se relata a aventura de Jasão na procura do velo de ouro; Teócrito (310 - 250 a.C.) de quem foi seguidor Vergílio no estilo poético pastoral nas Eclogas e muitos outros como Aristárco de Samotrácia (215 - 131 a.C.), autor do primeiro sistema heliocêntrico, discípulo de Aristófanes de Bizâncio (257 - 187 a.C.) que lhe sucedeu também na direcção da Biblioteca de Alexandria, autor de cerca de 800 papiros e de uma edição dos Hinos Homéricos.

A Biblioteca de Alexandria fundada em 332 a.C. por Alexandre o Grande, era o centro do desenvolvimento da ciência astronómica e matemática, para não citar amplas referências à ciência geográfica e médica e às Artes, onde pontificavam nomes como Arquimedes e Euclides fundador da Escola de Matemática na dependência da Biblioteca de Alexandria, herdeira das tradições dos Mistérios Herméticos e dos profundos conhecimentos de geometria egípcia. Não esqueçamos Eratóstenes que chegou a medir o perímetro da Terra, com uma margem de erro incrivelmente pequena.

Por último entre os génios matemáticos da Antiguidade e encerrando a existência da Biblioteca encontramos Hipátia (370 - 415 d.C.), brutalmente assassinada por um grupo de fanáticos religiosos a mando de Cirilo, arcebispo cristão de Alexandria. Possuidora de uma esmerada educação conferida pelo seu pai Teon, e que incluía arte, ciência, literatura, filosofia, oratória, retórica e uma formação profundamente politeísta que colidia com os interesses do cristianismo. Hipátia tem sido desde sempre comparada a Ptolomeu, Euclides, Apolónio, Diofanto ou Hiparco. Porém, os seus tratados, entre os quais apenas sobreviveram um sobre as cónicas de Apolónio e outro sobre a geometria euclidiana, foram destruídos com a Biblioteca, ou quando o templo de Serápis foi saqueado.

Afirma Carl Sagan (1) “Existem lacunas na História da Humanidade que nunca poderemos vir a preencher. Sabemos, por exemplo, que um sacerdote caldeu chamado Berossus terá escrito uma História do Mundo em três volumes, na qual descrevia os acontecimentos desde a Criação até ao Dilúvio (período que ele calculava ser de 432 mil anos, cerca de cem vezes mais do que a cronologia do Antigo Testamento!). Que segredos poderíamos nós desvendar se pudéssemos ler aqueles rolos de papiro? Que mistérios sobre o passado da humanidade encerrariam os volumes desta biblioteca?”

Vergílio, conhecedor das tradições mistéricas da Escola de Alexandria, herdadas dos ancestrais sistemas filosóficos babilónicos zoroastrianos e hinduístas dos escritos Upanishads, faria reflectir na Eneida no Canto VI, quando ao fazer o herói troiano Enéias percorrer o Tártaro e o Elísio na busca do pai Anquises, nos dá conta de forma exploratória e concisa “dos reinos sem consistência” (2), seguindo os preceitos da Sibila, uma viagem aos reinos onde o tempo não é senhor, permitindo o vislumbre do futuro que o espera e ao mesmo tempo um relato pormenorizado e por vezes horrendo das situações que envolvem as almas que os povoam, tal como Dante Alighieri o faz na Divina Comédia também pela mão avisada e conhecedora de Vergílio na visita ás dimensões imateriais do Purgatório e do Inferno.

Tal como na mitologia egípcia existe um barqueiro - Anúbis, o Caronte na Eneida, que transporta as almas, “leves seres incorpóreos, que volitam sob a oca aparência de corpos” (3), na transposição do rio das lamentações, o Aqueronte que “fervilha e vomita toda a sua vaza no Cocyto”. O rio tomado aqui como ideia de fluxo continuamente evolutivo e transitório na sua constituição, propagativo de fenómenos locais, tal como um sistema ondulatório de probabilidades. Ali, no rio, os espaços (as margens) ditam às massas (águas) como se comportarem e as massas (águas) ditam aos espaços (margens) como se apresentarem. O mesmo acontece no Espaço e no Tempo einsteiniano onde ambos têm uma natureza relativa e não absoluta newtonianas. O barqueiro, como um deus, é o viajante no Tempo que tudo regula nas diferentes dimensões ao estabelecer leis que regulam o comportamento de quem transitoriamente se apresenta para transpor as ondulações das águas que possuem cor, de forma semelhante como as frequências do espectro visível. É assim que surge a ”vaza esverdeada de limo sem forma” (4), ou “um rio rápido com chamas abrasadoras” (5), ou ainda as águas do rio Estige com um tom avermelhado.

Antaeus (grego) o deus egípcio dos barqueiros

Fonte:Por A8takashi - Obra do próprio, CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=69853012



Para além do rio Estige outros quatro desembocam no submundo do deus Hades, tais como o Aqueronte (rio da dor), outros como o Letes (rio do esquecimento), o Phlegethon (rio do fogo) ou o Cocyto (rio das lamentações). Caronte, é o barqueiro mediador que transporta as almas dos mortos através dos rios de acordo com os Manes (karma) de cada uma, em direcção ao submundo.

A transmigração das almas (espíritos) e a reencarnação são assuntos assumidos em ambos os poemas: na Eneida por estar no tempo mais próxima das fontes, e na Divina Comédia temporalmente numa época posteriormente distinta, a da Idade Média, influenciada claramente pela primeira ao colocar Vergílio como figura central, fosse ainda pela retoma das tradições defendidas nas doutrinas e filosofias mistéricas do Antigo Egipto, e que muitos atestam ao conferirem a Dante os conhecimentos exigidos.

Prova Anquises a existência da alma (espírito), no seu discurso a Enéias, quando finalmente se encontram de forma virtual, e esclarece: ” Vou dizer-te então, filho, e não te deixarei na incerteza… Antes de mais deves saber que um espírito imanente alenta o céu e as terras, as planícies líquidas (os oceanos), o refilgente globo lunar e o astro do Titã (o Sol), e uma alma, derramando-se pelos membros, põe em movimento toda a matéria e penetra o magno corpo.” (6).

E logo á frente diz, reforçando a concepção da reencarnação: “Cada um de nós sofre os seus Manes (destino, karma). De lá somos enviados para o amplo Elíseo (paraíso). Poucos habitamos os campos da alegria. Até que o longo passar dos dias, completado o ciclo de tempo, nos livra de labéu antigo e deixa puro o celeste sentido e o puro fogo do espírito. O deus evoca todas estas, depois de terem feito girar durante mil anos a roda do tempo, para junto do rio Letes (rio do esquecimento), em grande multidão, precisamente para que, esquecidas, voltem a contemplar a abóbada celeste e comecem a ter o desejo de regressar aos corpos.” (7)

Na mitologia grega o rio Letes fluía pelas cavernas de Hypnos, o deus do sono, considerado a antecâmara da morte. As almas dos mortos só estariam aptas a reencarnarem quando obrigadas a beberem do rio para esquecerem as suas vidas passadas. A Eneida faz referência a esta obrigação. Porém ao não beber do rio Letes, a alma poderia ver ultrapassado a sujeição ao ciclo de morte, esquecimento e renascimento, como ensinavam os mistérios órficos, onde outro rio, o Mnemosyne rompia o tecido do espaço-tempo.

Também o físico teórico italiano Carlo Rovelli se sente atraído pela ideia da água e do mar oceano, quando intuitivamente tenta descrever o espaço-tempo como laços do campo gravitacional na escala de Planck (10-33 cm), ao referir que “o tecido formado pelos laços é muito mais cerrado do que os aglomerados de átomos que vivem dentro dele. Podemos ver estes últimos como grandes pérolas bordadas no tecido fino de uma camisa – ou talvez como peixes num mar onde cada molécula de água corresponde a um laço.” (8).

Deverá ser a este nível onde quase tudo se passará: onde em vez do espaço-tempo contínuo que nos é dado constatar macroscopicamente no nosso dia-a-dia, nos transpomos para a fluidez dimensional das altas energias vibracionais dos “laços quânticos” que se contêm a si próprios, e que se rompem na presença de massas como os campos electromagnéticos na presença de cargas eléctricas, ainda de acordo com Rovelli.

Estas massas, neste caso poderiam ser vórtices energéticos criados na aniquilação partícula-antipartícula das flutuações do vácuo quântico, matematicamente revelados nos Diagramas de Feynman e detectadas pelo Efeito Casimir. Espécie de nano buracos negros, irmãos microscópicos dos titânicos cosmológicos, e que afinal no seu conjunto sustentam a nossa realidade material, de onde tudo procede, como ilusão resultado de uma profunda magia que o CERN - Organização Europeia para a Investigação Nuclear, ainda não possui, mas contudo corporizado num processo antevisto nos Vedas pelo ciclo infinito dos Gunas figurados nos Rajas-Tamas-Sattva ou na filosofia japonesa taoista das forças Yin-Yang.

Em ambos os casos teríamos corpos estelares, sóis mitologicamente designados por Titãs, fossem eles as estrelas de neutrões com massa acima daquela de Chandrasekhar , fontes de Buracos Negros de dimensões cosmológicas e depois, aos nossos olhos passados éons de tempo, convertidas pela acção da Radiação de Hawking (efeito partícula/antipartícula) em  Estrelas de Planck, ou fossem ainda os nano buracos negros/brancos gerados nas flutuações do vácuo quântico (o mesmo efeito partícula/antipartícula).

 Diz Hermes Trismegisto no seu segundo Aforismo da Correspondência: “O que está em cima é como o que está em baixo, e o que está em baixo é como o que está em cima.”

Afirma Rovelli: “O pensamento científico está consciente da nossa ignorância. Eu diria até que o pensamento científico é a própria consciência da extensão da nossa ignorância e da natureza dinâmica do conhecimento. É a dúvida, não a certeza, que nos faz avançar.” (9).

Nos Cantos dos grandes poemas da humanidade, de que fazem parte a Eneida e a Divina Comédia, a certeza carece de prova porque a revelação faz parte da mente intuitiva que acede aos arquétipos e às construções mentais colectivas da humanidade reveladas por Platão e Jung.

 

Ponta Delgada, 4 de Junho de 2022

 

Notas bibliográficas

(1) Sagan, Carl, Cosmos, Editora Gradiva, 1980.

(2) Eneida, Vergílio, Bertrand Editora, Lisboa 2020, Canto VI, 260.

(3) Eneida, VI, 290 (p.159).

(4) Eneida, VI, 410 (p.163).

(5) Eneida, VI, 550 (p.168).

(6) Eneida, VI, 730 (p.173).

(7) Eneida, VI, 750 (p.174).

(8) Carlo Rovelli, E Se o Tempo não Existisse?, Edições 70, Fevereiro 2022 (p.42).

(9) Carlos Rovelli, E Se o Tempo não Existisse?, Edições 70, Fevereiro 2022 (p.65).

 

Texto publicado em 

https://www.revistafenix.pt/a-eneida-aeneis-e-a-divina-comedia-uma-leitura/




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