domingo, 26 de setembro de 2021

Os Construtores



por João G. F. Porto

Assim como a vida faz uso de uma estrutura de programação que permite que a informação ali residente seja veiculada para replicar e orientar, dar propósito através da evolução, a seres de grande variabilidade morfo-genética, também o Universo poderá usar um sistema de programação que utilize redes to tipo neuronal – uma megaestrutura tipo Laniakea, onde as galáxias se agrupam em redes de potentes vórtices de plasma electromagnético de muitos milhões de anos-luz – que utilize entidades denominadas “Construtores” ou veículos de informação, ao invés de utilizar um conjunto de axiomas e princípios como as Leis da Termodinâmica e as do movimento das partículas ou os estados quânticos para justificar a sua evolução, feita sempre numa óptica newtoniana/galileana, diríamos mesmo puramente fisicalista, limitando-se a descrever factos.

Até agora qualquer teoria de sucesso com base num dado espaço-tempo e considerando um determinado estado inicial e ainda baseando-se nas leis do movimento, deveria conseguir prever num espaço-tempo adicional a evolução dos fenómenos naturais em apreciação.

A Teoria dos Construtores (que passaremos a designar abreviadamente por TC) de David Deutsch e Chiara Marletto da Universidade de Oxford (1) descreve a natureza pelas transformações físicas possíveis e impossíveis e do porquê da sua existência, ao invés de o fazer em termos de estados iniciais pré-estabelecidas e completamente arbitrários e inexplicáveis, que tanto no passado como no futuro são sempre referenciadas como leis dinâmicas que definem trajectórias, percursos que se desenvolvem no espaço-tempo laplaciano. Ou seja, na TC o mundo não deverá ser descrito por condicionalismos elencados ou pré-estabelecidos sem qualquer outra explicação. Os “Construtores” são alheios à possibilidade ou impossibilidade dos factos ou das relações entre factos poderem existir ou deixarem de existir: é por base uma teoria contrafactual que quer explicar a razão da existência das condições iniciais e não descrever os fenómenos naturais a partir delas tornando-se assim um corpo de filosofia não determinística.

As Leis da Termodinâmica que proíbem pura e simplesmente a existência de determinados estados físicos ou garantem a existência de tantos outros, são axiomas que como tal não explicam a sua própria origem e que determinam o que é possível e o que é impossível de acontecer no espaço-tempo. Esta atitude de encarar a coisa fenoménica talvez passe por estarmos confinados ao Espaço-Tempo einsteiniano, onde a matéria (massa/energia) dita ao espaço-tempo como se comportar. Talvez que outra coisa não seria de esperar quanto à nossa visão do mundo, mesmo aquela mais optimizada traduzida pela matemática.

O mesmo é dizer que as leis da física introduzem limitações mas não explicam a existência dessas limitações. Uma das justificações levar-nos-ia a uma visão antropocêntrica: as leis são o que são porque nós existimos. Uma história renovada da menina de caracóis de ouro.

De acordo com David Deutsch, um “Construtor” é qualquer entidade que provoca transformações (referidas na teoria como “tasks”) de acordo com inputs, dando origem a outputs com atributos diferentes dos iniciais, e mantendo a capacidade de reproduzir a sua actividade. Nesta teoria os inputs e outputs são considerados “substratos”. São exemplos de “construtores” na área da biologia os catalisadores, o DNA ou os ribossomas.

Assim, a TC analisa as leis da física sob a óptica da possibilidade ou impossibilidade das transformações ou “tasks” e com que substratos são realizadas bem como os atributos assumidos no decorrer do processo.

Assim é resolvido o problema filosófico da causalidade: o porquê da Causa anteceder sempre o Efeito. A TC é incompatível com a ideia de que a Ciência é uma colecção de factos.

Outro problema que a TC resolve é a definição do que se entende por Conhecimento ao definir o conceito de “Construtor” e a sua capacidade de replicação ou cópia recriando processos contínuos de milhares de milhões de transformações sobre substratos e introduzindo com esse processo novos atributos que constroem e ampliam a Informação. Assim o Conhecimento é um “Construtor” cujos processos de transformação, incidem sobre substratos (neste caso os inputs serão os meios físicos tais como os média, livros, drives, a própria mente e os outputs os registos – que organizados constituem a Informação, agora adicionada aos referidos meios físicos).


A Web Cósmica: esta imagem  gráfica representa uma simulação de uma porção da estrutura do Universo onde os filamentos são constituídos por Matéria Escura localizada no espaço entre as galáxias.
Crédito: Commons.Wikimedia

Na natureza as transformações não ocorrem espontaneamente. Se ocorressem não existiriam “Construtores”. Todas as criações humanas utilizam o Conhecimento espelhado em Informação estruturada. O Universo com os seus buracos negros, galáxias, sóis e sistemas planetários não surgem espontaneamente e são apenas uma ínfima parte daquilo que pode ser “criado” ou transformado a partir de inputs que antecedem seja até às presumíveis condições iniciais do Big Bang do abade belga Georges Lemaître ou da Teoria Cosmológica Conforme de Sir Roger Penrose. Por detrás de toda a actividade existe um “Construtor” ou Informação estruturada. A ideia reducionista que atribui à natureza quântica das partículas, funções de onda ou ao espaço-tempo o reduto fundamental de tudo, e assim é no nosso conhecimento actual das coisas, a TC alicerça os seus fundamentos na compreensão da realidade na Informação ou Conhecimento.

A ideia de que a Informação constitui um dos blocos fundamentais do Universo data de meados do século XX com o matemático e engenheiro Claude Shannon, considerado o pai da idade digital, o primeiro a definir a unidade de informação como um bit. Também John Wheeler que trabalhou com Niels Bohr e Albert Einstein proclamava “it from bit” ou que toda a partícula no Universo emanava da informação nela residente. Mais tarde o Princípio de Landauer e a Relatividade Especial são relacionados por Melvin Vopson onde um bit passa a ter realidade física, quantificável e finita por equivaler termodinamicamente a energia e a massa: um bit de informação à temperatura de 300 Kelvin é igual a 3.19 x 10-38 Kg.(2)

Em 2008 Paul Gough publica um trabalho (3) onde relaciona o valor atribuído à Energia Escura, w=-1, para a época inicial da construção estelar, e estima que um Universo com 1087 bits seria o suficiente para que toda a energia contida na informação equivalesse à Energia Escura.

 

Uma das entidades presentes ou um dos “Construtores” é o próprio ser vivo de que não escapa o ser humano e a consciência.

Não existe nenhuma equação que preveja que milhares de milhões de anos no passado remoto da história da Terra uma bactéria desse origem ao ser dotado de consciência. Não consta dos fundamentos da Teoria Evolucionista de Darwin qualquer propósito neste sentido. Pelo contrário, a evolução foi feita com “Construtores” ou informação acumulada e transmitida de geração em geração através do código genético ou de unidades base, designadas genes. O que esteve na base da Vida foi a capacidade de possibilitar a realização de “Tasks” ou transformações com novos produtos com atributos diferentes deixando para trás os produtos impossíveis de sobreviver. Mas a informação que tornou viável a constituição do primeiro codão ou sequência de RNA, não era cega nem foi obra do acaso ou de um acto espontâneo. Ela encontrava-se na informação da natureza quântica (o software – o “Construtor”) das próprias moléculas em jogo (hardware – substracto, input) e onde o meio aquoso com as suas pontes de hidrogénio teria um papel fundamental (a wetware definida pelo biólogo de sistemas Dennis Bray) em reter a informação e passá-la adiante com novos atributos incorporados (output). Em biologia são as chamadas “vias de sinalização” ou conjunto de módulos que exercem a comunicação entre os diferentes componentes do sistema assim como com o ambiente externo. Permitem enviar sinais electromagnéticos e de natureza química onde a geometria da funcionalidade molecular desempenha um papel crucial, tipo chave “ligado” e “desligado”, qubit 1,0 ou 1 e 0, sobreposição de estados quânticos e utilização de incidência no espaço e no tempo, criando assim propriedades ricas em informação, cujos atributos, tipo etiquetas, podem ser armazenados como memórias de experiências passadas no ADN, passando de geração em geração. Este é o fundamento da epigenética.

Outro aspecto recentemente descoberto refere-se á capacidade de transmigração e incorporação de material proteico e mesmo genético existente no meio ambiente e derivado de material orgânico comum nas células de organismos vivos. Isso significa que muito da matéria orgânica proveniente da decomposição de outros seres vivos pode ser utilizada na génese de outros – a epigenética que ultrapassa o transgeracional.

Estes processos de passagem da informação, agora vistos na óptica de “Construtores”, são a forma que a vida utiliza para criar estruturas ordenadas no espaço e devidamente proporcionais em escala. O Número de Ouro é uma constante simples de origem geométrica que reflecte e revela a extraordinária beleza na capacidade de replicação da informação em gradientes espaciais. Esta informação estende-se para além da dimensão do espaço físico: quando amputamos um braço ou uma perna continuamos a senti-los.

Como afirma Paul Nurse, prémio Nobel da Medicina 2001 (4), “Poderá dar-se o caso de a complexidade da biologia conduzir a explicações estranhas e não intuitivas, e que, para as compreender, os biólogos necessitem cada vez mais da assistência de cientistas de outras disciplinas, nomeadamente de matemáticos, de cientistas da computação, de físicos e até de filósofos, que estão mais acostumados a pensar de maneira abstracta e que estão menos focados nas nossas experiências mundanas quotidianas.”

Os “Construtores”, no processo da Informação, estabelecem uma intrincada rede de nodos pelas interacções que promovem sobre os seus “substractos”, a que Donald Hoffmann designa por CAN`s ou “Conscious Agents” (5). Não existem propriedades se não houver interacções ou relações: é o caso das partículas subatómicas que só ganham atributos físicos conferidos pela sua posição, velocidade e momento magnético, apenas quando interagem. O desempenho dos “Construtores” é fundamentalmente relacional. Não existem propriedades fora das interacções como afirma Carlo Rovelli no Helgoland (6), reiterando que “Em vez de vermos o mundo físico como uma colecção de objectos com propriedades definidas, a teoria quântica convida-nos a ver o mundo físico como uma rede de relações. Os objectos são os seus nodos.” A realidade faz-se de informação estruturada e é relativística. A relatividade é transversal ao macro e ao microcosmo porque o que é comum aos dois é a Informação como conceito construtor.

Este mistério recua no tempo, quando Aristóteles na sua Physics (7) comenta que segundo Empedocles os seres parecem estar organizados com um propósito, quando na realidade as coisas estão estruturadas de forma aleatória e que aquelas que assim não estão organizadas, desaparecem. Ideia muito bela mas que não explica nada, apenas constata factos e relações entre os mesmos. Não ultrapassa os conceitos de “estado inicial” e de “movimento”.

Contudo a ideia de “Construtores” ou dos “Conscious Agents”ou da Informação subjacente aos fenómenos da natureza não é nova e diremos mesmo até que tem já alguns milhares de anos. Podemos encontrá-la na filosofia dos Vedas, nos Puranas, ou mais recentemente na Teosofia da escola de Helena Blavatsky.

Diz Carlo Rovelli (8), “A fé na ciência característica do século XIX, a sua glorificação positivista como saber definitivo a respeito do mundo, está hoje em colapso. A primeira responsável por essa derrocada é a revolução da física do século XX, que revelou que, apesar da sua incrível eficácia, a física de Newton é, num sentido muito preciso, falsa. Grande parte da posterior filosofia das ciências pode ser lida como uma tentativa de redefinir, sobre essa tabula rasa, a natureza da ciência.”

Helena Petrovna Blavatsky, limitada pela ciência do século XIX no seu exacerbado positivismo, lança pistas em Doutrina Secreta, de profunda reflexão filosófica com uma visão nova da história da humanidade, da cosmogénese, dos estados de consciência e até de novas formas de energia ininteligíveis para a época, mas que encontram eco nas mais recentes teorias deste novo século XXI.


Helena P. Blavatsky

Crédito: Wikimedia Commons


Em Doutrina Secreta, Volume I da Cosmogénese, nos comentários sobre a Estância II do Livro de Dzyan é citada a estância que transcrevemos:

“…Onde estavam os Construtores, os Filhos Resplandecentes da Aurora do Manvantara? … Nas Trevas Desconhecidas, em seu Ah-hi Paranishpanna (Dhyâni-Búddhico). Os Produtores da Forma (Rûpa), tirada da Não-Forma (Arûpa), que é a Raiz do Mundo (Aditi), Devamâtri e Svabhâvat, repousavam na felicidade do Não-Ser.”

HPB diz-nos então que os “Construtores” são os verdadeiros criadores do Universo ao constituírem a primeira manifestação no início de um novo Manvatara (fim da idade de Brahmâ) ou ciclo de evolução do Universo, onde este não é criado mas surge de um anterior (tal como a Teosofia defende) – aquilo que a cosmologia actual diz ter detectado com os designados “Pontos de Hawking” teorizados por Roger Penrose como vestígios de Universos anteriores e resultado do acúmulo da “radiação de Hawking” emitida pelos Buracos Negros e visíveis na radiação cósmica de fundo.

O Paranishpanna transmite a ideia de um estado Absoluto (o Paranirvâna sanscrito) e ao qual HPB refere dizendo que “Mais cedo ou mais tarde, tudo quanto agora parece existir existirá real e verdadeiramente no estado de Paranishpanna.” É a versão da filosofia védica transcrita para o Ocidente em 1888 da Cosmologia Cíclica Conforme de Roger Penrose.

Fundamentalmente a doutrina esotérica trabalha sobre a existência dual – Espírito e Matéria, dando primazia ao primeiro. Os “Construtores”, ou “Lipikas”, os “Rishis” ou ainda os “Filhos da Luz”, conceitos que se estendem por corpos de filosofia desde o Bhagavata Puran  indu, passando pela Cabala hebraica, ou ainda reflectidos modernamente nas Mônadas do matemático e filósofo Gottfried Leibnitz, poderiam levar-nos a alvitrar que são entidades de natureza quântica, campo quântico de informação estruturada fazendo parte de um Campo Unificado conjuntamente com o Espaço Granular “espuma de spins” em Carlo Rovelli.

Os “Lipikas” são definidos na teologia indu e pelo sânscrito como os registadores de todos os fenómenos que tiveram, têm ou virão a ter lugar no Universo tendo um papel fundamental após o Pralaya (período entre dois Manvataras) para a evolução do mesmo. Interessante verificar, que a existência do Tempo só é considerado com o surgimento do Universo e que também todos os conceitos ligados aos “Construtores” e seus similares têm uma ligação muito estreita à Informação ao Conhecimento e á Consciência.

A filosofia esotérica transpõe depois estes “Lipikas” como inicialmente entidades construtoras no processo da cosmogénese para entidades que surgem do Conhecimento Colectivo dos Dhyânia-Buddas ou Dzyu, ao converterem-se em Fohat (input, substrato na teoria TC) ou estrutura que contém uma mensagem codificada em qubits, que sofrendo tansformações, originam outputs com atributos sempre diferentes (a base da Lei do Karma). Isto será fruto de um processo evolutivo envolvendo éons de tempo.

Também notar que a expressão “Filhos da Luz” e “Filhos Resplandecentes” são a forma encontrada para referir os campos quânticos electromagnéticos de natureza não conhecida comparando-os com a natureza da luz.

Poderíamos estender as comparações entre os “Construtores” da TC e os védicos ou da Teosofia de HPB. Contudo e como conclusão é importante perceber que o princípio dos “construtores” em ambas está na base de um processo de diferenciação onde o homogéneo, estado anterior ao Big Bang, (a partir do ponto Laya) se converte em heterogéneo, e éons de tempo depois o “Protilo” nos “Elementos”, a organela incorpora a célula e a célula incorpora todos os organismos, os genes dos seres arcaicos incorporam o ADN humano, os fermiões incorporam os átomos e estes todos os elementos da Tabela Periódica. E nesta cadeia de aparente caos subjaz no entanto a ordem instaurada pela Informação.

Ponta Delgada, 25 de Setembro de 2021


Notas e bibliografia

(1) Chiara Marletto, The Science of Can and Can`t, Penguin books Ltd, 2021.

(2) Melvin M. Vopson, The mass-energy information equivalence principle, AIP Advances, 9.095206 (2019), https://doi.org/10.1063/1.5123794.

(3) M. Paul Gough, Information Equation State, Entropy 2008, 10(3), 150-159, https://doi.org/10.3390/entropy-e10030150, Space Science Center, University of Sussex, BrightonBN1 9QT, United Kingdom.

(4) Paul Nurse, O Que é a Vida? Edição 2021 VOGAIS, 20/20 Editora, Junho 2021.

(5) Donald Hoffman, The Case Against Reality, how Evolution Hid the Truth from Our Eyes, Norton, W. W. & Company, Inc., Agosto 2019.

(6) Carlo Rovelli, Helgoland, Allen Lane – Penguin Books, 1ª edição, 2021.

(7) Aristóteles, Physics, II, 8, 198b29.

(8) Carlo Rovelli, Anaximandro de Mileto ou o nascimento do pensamento científico, Edições 70, Edições Almedina, S.A., Julho 2020.

Helena P. Blavatsky, Doutrina Secreta, Cosmogénese – Volume I, Editora Pensamento, São Paulo.

Bhagavad Gitã, Edición de Consuelo Martín, Editorial Trotta, 1ª reimpressão, 2018.

Chiara Marletto, 2015 Constructor theory of life. J. R. Soc. Interface 12: 20141226. http://dx.doi.org/10.1098/rsif.2014.1226. Department of Materials, University of Oxford, Oxford OX1 6UP, UK.

Aleksandar Malecic, WHAT DOES CONSTRUCTOR THEORY CONSTRUCT?: KNOWLEDGE AS A PHYSICAL PROPERTY, Faculty of Electronic Engineering University of Nis, Serbia.

Riccardo Franco, First steps to a constructor theory of cognition, arXiv:1904.09829v1 (csAI), 21 Mar 2019.




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