quarta-feira, 31 de maio de 2023

Thot ou Hermes Trismegistos

 


“Que os humanos reverenciem, aquele que torna a palavra uma poderosa ferramenta,

Esteja presente Mercúrio, e escute o meu chamado,

Ajude a minha obra, e conceda-me um bom fim à vida com paz na alma,

Ofereça-me eloquência de fala, em graças e em memórias.

Mercúrio, aproxime-se e ouça a minha prece com bondade.”

 Extracto final do Hino Órfico a Mercúrio

 

Originalmente Thot é considerado o deus egípcio da sabedoria do conhecimento e da luz. Contudo, do intercâmbio da civilização grega com a egípcia, o deus Thot foi assimilado como Hermes grego, e desse sincretismo resultou o Hermes Trismegistos egípcio (três vezes grande), inventor da escrita hieróglifica, também é-lhe atribuída a revelação da aritmética, da astronomia, da música, medicina, desenho, das ciências como um todo e da magia como prática do conhecimento. Também era conhecido como o “Mestre das Palavras Divinas”, sendo-lhe atribuído a invenção do cômputo dos dias e a criação do calendário com 365 dias, muito semelhante ao que usamos ainda hoje.

De acordo com o que reza a lenda, Thot ao criar a escrita, tinha a intenção de tornar os egípcios mais sábios e de reforçar a memória dos acontecimentos. Neste aspecto Rá (Sol) discordava de Thot, uma vez que a escrita faria com que a humanidade deixasse de acreditar na informação oral transmitida de geração em geração. Contudo, apesar desta discordância, Thot transmitiu a escrita aos escribas, cuja função era de assentar todos os acontecimentos históricos e do dia-a-dia. Por esse facto, tornou-se o patrono dos escribas.

“O homem nada sabe, mas é chamado a tudo conhecer”. (Thot)

Acredita-se que o próprio deus Toth teria deixado uma série de inscrições de carácter secreto ou hermético datado do Período Ptolomaico (III século a.C.) onde existiria uma descrição mais detalhada de um conjunto de textos iniciáticos escritos pelo próprio. De acordo com Clemente de Alexandria haveria 42 livros contendo todo o conhecimento necessário à humanidade, dos quais 36 conteriam a ciência dos egípcios e os restantes os conhecimentos de medicina, alquimia, astrologia e matemática. Thot foi sempre associado aos aspectos da cosmogénese, assim como às faculdades humanas relativas ao pensamento e ao conhecimento.

Para os romanos, Thot aparece relacionado com o deus Mercúrio, mensageiro dos deuses e condutor das almas dos mortos ao reino de Plutão, enquanto para os gregos surge como o deus grego Hermes, considerado o criador do Hermetismo. Para os egípcios é também conhecido como Zehuti, Tehuti, filho de Geb e de sua irmã Nut, o senhor do conhecimento mágico e dos segredos divinos colocados à disposição dos deuses e dos homens, o “senhor do heka” (magia) sendo esta certamente a fonte da relação da doutrina secreta com o conhecimento mágico. É citado como sendo filho tanto do deus Rá como de Seth e o seu santuário principal, local de culto, para além da Núbia, residia na cidade de Hermópolis, no Delta do Nilo, chamada pelos egípcios de Khmunu, cujo significado era “a cidade dos oito deuses” – Nu, Atum, Osiris, Isis, Seth, Néftis, Hórus e Toth.

A primeira referência a um livro escrito por Toth talvez seja uma inscrição datada da XVIII Dinastia (1398 a.C.), encontrada em uma das estátuas do vizir Amenhotep depositadas no templo de Amon em Karnak. O texto sugere a existência de um livro que conteria os ensinamentos iniciáticos do deus, e que pode ser observado na inscrição: “Fui iniciado no livro do deus, vi as glorificações de Toth e penetrei nos seus segredos”.

O seu nome aparece nos Textos das Pirâmides ou Livro dos Mortos Egípcio, uma colectânea de orações e hinos mortuários destinados a proteger os faraós de modo a assegurar-lhes a vida eterna para além da morte. Por ser o deus da sabedoria fazia de advogado quando a alma do morto era submetida a julgamento, sendo pesada para determinar o seu destino após morte. Na balança era colocada num prato uma pena simbolizando a verdade e do outro lado o coração do morto. Era Thot que determinava se o morto era digno. Então seria condenado se o seu coração pesasse mais que a pena da verdade. Toth junto com Maat, a Deusa Egípcia da Justiça, ficavam em cada lado do barco de Rá (o Sol) enquanto este cruzava os céus (tal como na mitologia grega, Caronte, barqueiro de Hades, que carrega as almas dos recém - mortos sobre as águas do rio Estige e Aqueronte, que dividiam o mundo dos vivos do mundo dos mortos).

Como Hermes Trismegisto, é-lhe atribuído um conjunto de escritos conhecidos como Leis Herméticas, referidas no Caibalion, e na famosa Tábua de Esmeralda.

As Leis Herméticas são as leis gerais que presidem ao funcionamento do Universo. São ao todo sete aforismas:

1 - Pensamento doutrinário simbólico assente no Princípio do Mentalismo: “O Todo é Mente; o Universo é Mental”.

2 - O homem como símbolo emblemático do mundo (relação microcosmo/macrocosmo) ou Princípio de Correspondência: “O que está em cima é como o que está em baixo e o que está em baixo é como o que está em cima”.

3 - A existência da “anima mundi” ou Princípio da Vibração: “Nada está parado; tudo se move, tudo vibra”.

4 - A teoria das correspondências entre níveis ou o Princípio do Género: “o Género está em tudo; tudo tem o seu princípio masculino e feminino; o Género manifesta-se em todos os planos”.

 5 - A complementaridade dos opostos ou Princípio da Polaridade: “Tudo é duplo; tudo tem pólos; tudo tem o seu oposto; o igual e o desigual, são a mesma coisa; os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau; os Extremos se tocam; todas as verdades são meias-verdades; todos os paradoxos podem ser reconciliados”.

6 - A ascensão da mente individual à região da Grande Mente ou o Princípio do Ritmo: “tudo tem fluxo e refluxo; tudo sobe e desce; tudo se manifesta por oscilações compensadas; a medida do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda; o ritmo é a compensação”.

7 - A vida como transmutação pessoal ou Princípio da Causa e Efeito: “Toda a Causa tem o seu Efeito e todo o Efeito tem a sua Causa; tudo acontece de acordo com a Lei; o acaso é simplesmente um nome dado a uma Lei não reconhecida; há muitos planos de causalidade, porém nada escapa à Lei”.

Estes princípios traduzidos nos sete axiomas do Caibalion (curiosamente a palavra tem a mesma raiz da palavra Kabbalah que significa “Tradição ou preceito manifestado por um ente de cima") corporizam a popularização da mensagem de Hermes Trismegisto e do Hermetismo actual.

Acredita-se que tenha sido um alto sacerdote atlante quando as civilizações da Segunda Era viram a sua existência tragada pelos oceanos muito antes da catástrofe climática do Younger Dryas há 12.900 anos provocada pelo impacto de um asteróide ou de um cometa no oceano atlântico.

Neste âmbito, Toth tornou-se a ponte entre a velha civilização e o novo mundo que iria surgir após o massivo cataclismo, responsável por transmitir o alto conhecimento dessa civilização que perecia sob o oceano. É assim que a escrita se torna o objectivo principal e que os escritos herméticos (ou aquilo que até nós chegou) transformam-se no seu maior contributo, neles revendo-se as actuais concepções da ciência sobre a natureza e o universo. Thot desceu à terra trazendo “os segredos que pertenciam ao horizonte”.

A sua representação iconográfica, além de ser representado como um homem com cabeça de Íbis, ou mesmo um Íbis, carregando a chave ankh e o bastão de Anúbis, representando a inteligência e o discernimento, ou até mesmo como um babuíno, surge também encimado por um disco lunar, sendo por isso tido como um deus lunar e um deus da cura, que ao pôr-do-sol, tentava amenizar a escuridão com sua luz. Rá deu a Thot a Lua para balancear o Sol. Porque a Lua é o núcleo e os restos da antepassada Terra, depois do impacto com o planetóide Theia, torna-se assim símbolo da sua origem ancestral e do equilíbrio estável para o surgimento da vida e o estabelecimento da humanidade.

A sua iconografia reúne diversas personificações de arquétipos da psique humana. Alguns desses arquétipos estão sempre presentes e repetem-se com diferentes nomes em diversas culturas humanas. O arquétipo mercurial é um dos mais presentes nas tradições do mundo, representado tanto por Hermes como por Mercúrio ou Loki, Thor e Odin na mitologia nórdica (o Caos necessário à Evolução). Thot é apenas a versão egípcia original desse arquétipo. O termo mercurial vem da astrologia e é geralmente usada para se referir a algo ou alguém errático, volátil ou instável, derivado da rapidez dos voos de Mercúrio de um lugar para outro. O deus romano Mercúrio, filho de Maia e de Júpiter, tinha os mesmos aspectos que o Hermes grego, calçando sapatos alados e transportando um caduceu (ou o bastão de Asclépio, deus romano da medicina e da cura, também visto na bandeira da OMS), uma haste heráldica com duas serpentes entrelaçadas (a dualidade do conhecimento para o bem e para o mal). Aparece muitas vezes acompanhado de um galo, o mensageiro de um novo dia (mas também da luta de galos transformando-se em deus dos ginásios), e de um carneiro, símbolo da fertilidade mas também lembrança antiga do deus campestre da pastorícia (Mercúrio crióforo), e ainda de uma tartaruga, do casco da qual criou a lira. Como resultado do sincretismo civilizacional greco-romano, também surge como mensageiro dos deuses, mas agora adaptado a novas necessidades como deus do sucesso comercial e do mercantilismo cerealífero, mas também deus dos ladrões. Tal como Hermes e Thot, assume o psychopomo - junção de psyche (alma) e pompós (guia) - sendo capaz de transitar entre polaridades (a vida e a morte, o dia e a noite, o céu e a terra), conduzindo almas recém falecidas à vida após a morte.

Mas ele nem sempre foi uma representação mercurial. Nos primórdios da civilização egípcia, mais perto da herança de Thot, era um deus lunar, e não mercurial, mantendo o disco lunar, como uma lembrança de passado.

Em muitas imagens a representação antropozoomórfica de Thot é feita na companhia de um babuíno, ou cinocéfalo. Porque o babuíno é um animal incómodo, que atrapalha a racionalidade, aqui é uma metáfora para a dualidade entre razão e a sua ausência, que interfere com o conhecimento.

Como deus da cura onde na lenda de Osíris, protegeu Ísis durante sua gravidez e curou seu filho Hórus quando Seth arrancou o seu olho esquerdo. Quando Thot entrega o olho totalmente regenerado e perfeito a Hórus, significa uma nova visão, simbolizando o surgimento do 3⁰ olho. Crê-se que o “Olho de Hórus” é o arquétipo que representa a região cerebral da glândula pineal, mas também a “Vescica Piscis” no proto cristianismo ou o simbolismo representado pela “Flor da Vida”. O “Olho de Hórus” é um símbolo egípcio que traduz os primeiros movimentos da criação, assim como a união do Princípio Feminino e do Princípio Masculino. A intersecção de dois círculos é o RU, “portal para a Luz” ou consciência.

Outra invenção atribuída a esse deus, além da escrita e das artes herméticas é o Tarot, também conhecido como “O Livro de Thoth“ ou o “Livro da Vida” que representa toda a experiência da jornada do ser humano em formas pictográficas e simbólicas.

O Tarot é uma representação pictórica das forças da natureza, concebida pelos antigos segundo certo simbolismo convencional. Para se perceber o conhecimento de natureza científica nele já presente e transmitida por Thot, convém rever alguns conceitos astronómicos base ali inscritos (muito anteriores a Copérnico e a Galileu):

 O Sol é uma estrela. Ao redor dele giram diversos corpos chamados planetas, inclusive a Lua, como satélite da Terra, girando todos apenas numa única direcção. O sistema solar não é uma esfera, mas sim uma roda, onde os planetas não coexistem num alinhamento exacto, mas oscilando por uma certa extensão (relativamente pequena) de um lado do plano para o outro. As suas órbitas são elípticas e descrevem um aro imaginário nessa roda. Dentro dos limites desse aro, as estrelas fixas a grandes distâncias estão ligadas ao movimento aparente do Sol. Surge assim o zodíaco como esse aro ou cinturão da roda, onde as constelações fora desse cinturão não pareciam ter muita importância para a humanidade, porque não se encontravam na linha directa da grande força giratória da roda (TARO = ROTA = Roda).

O Tarot é chamado de “O Livro de Thot ou Tahuti”, onde se traduz a influência dos dez números e das vinte e duas letras sobre o ser humano. Vinte e dois é o número das letras do alfabeto hebraico. É o número dos caminhos do Sepher Yetzirah, o Génesis hebraico da Cabala. Esses são os caminhos que unem os dez números na figura chamada Árvore da Vida ou da Constituição Septenária. As letras do alfabeto hebraico são vinte e duas. Há três letras-mãe para os elementos (como os elementos são 4, ar, terra, água e fogo, existe uma letra que funciona a duplicar), sete letras duplas para os planetas e doze letras simples para os signos do zodíaco.

Contudo a tradição hermética faz recuar no espaço e no tempo as origens destes conhecimentos. Helena Blavatsky, no volume V da Doutrina Secreta, dedica a sua introdução a “provar que a chave de interpretação proporcionada pelas regras orientais indo-budistas de Ocultismo se adapta tanto aos Evangelhos cristãos como aos livros arcaicos egípcios, gregos, caldeus, persas e hebreus”. Afiança que “Ensinava Amônio Sacas que a Doutrina Secreta da Religião - Sabedoria estava toda contida nos Livros de Thoth (Hermes); onde Pitágoras e Platão, beberam os seus conhecimentos e grande parte da sua filosofia; e que esses livros eram idênticos aos ensinamentos dos sábios do Extremo Oriente”.

Em nota de rodapé em Doutrina Secreta V, Secção IV, H. Blavatsky faz questão em transmitir-nos esta mensagem profunda e transversal: “Os escritos da antiguidade muitas vezes personificavam a Sabedoria como uma emanação auxiliar do Criador. Assim, temos o Buddha hindu; o Nebo babilónico, o Thoth de Menfis, o Hermes da Grécia.” Acrescentando de seguida que: “Na Doutrina Secreta do Oriente esta função auxiliadora encontra-se colectivamente nas primeiras emanações da Luz Primordial, os Sete Dhyan-Chohans, cuja descrição se identifica com os “Sete Espíritos da Presença” dos católicos romanos.”. Eis então o fio condutor espiritual da humanidade que perpassa por todas as civilizações e culturas. Hermes Trimesgisto ou Toth foi uma das pérolas desse longo colar, apenas um dos Construtores (avatares) propiciadores de metamorfose e mutação, física e espiritual do Homem, uma versão de uma mesma Entidade.


João Porto e Ponta Delgada, 29 de Maio de 2023, Dia da Autonomia

Publicado em Revista Fénix - https://www.revistafenix.pt/thot-ou-hermes-trimegistos/

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