domingo, 14 de janeiro de 2024

O Tempo em Odysseus

 

Em todo o poema da Odisseia, Homero parece mostrar uma noção de temporalidade feita à medida. O tempo desenvolve, com Ulisses e os seus companheiros, uma plasticidade que lhes permite, ao dilatá-lo, ser possível compactar experiências e actividades num período muito curto que de um modo normal levariam mais tempo. Ali, o tempo por vezes pára para dar azo a um cortejo de acontecimentos num cone de luz que se desenvolve a outra velocidade, como se os intervalos que medeiam entre acontecimentos acelerassem. Como se a descrição dos acontecimentos fosse pautada por interlúdios onde se adensam e desenvolvem paralelamente outros vectores de tempo, alternativas temporais ao tempo real, que consubstanciam a heroicidade dos seus autores e reforçam a ideia do Tempo, grande oceano composto por correntes diversas que no entanto se complementam criando um historial devidamente estruturado.

Sugere-nos a poesia homérica que a história humana, que evolui num cone de luz único – passado-presente-futuro, onde prevalece o papel tirânico dos deuses imortais, é composta no entanto por cenários alternativos em que prevalece ilusoriamente o livre-arbítrio dos mortais, cenários individualizados em cada mortal, gerando ramificações onde o tempo se desenvolve a outras velocidades que são afinal os cones de luz individuais de cada Ser. Cada um evolui de acordo com as suas experiências pessoais e a densidade das suas memórias passadas, conferindo assim velocidades diferentes em desenvolvimentos temporais futuros.

As consequências normais da passagem do tempo parecem não ter qualquer efeito em Ulisses. Ao regressar a Ítaca encontra à sua espera o mesmo leito nupcial e Penélope, sua mulher e prima de Helena de Tróia, como se não tivessem passado vinte anos, e é através do Amor e com a ajuda da deusa Atena que o reencontro se faz, voltando a normalizar o fluxo do tempo, religando eventos do passado e do futuro.

No atribulado mundo das suas aventuras, assim Ulisses, o herói, que representa simbolicamente o caminho esforçado e de dor da humanidade, é o único que regressa a Ítaca, porque manteve a força da atenção e da inteligência para se encontrar a si próprio. Os seus companheiros morreram, alguns naufragaram, outros engolidos por monstros horríveis, todos desapareceram nas histórias alternativas paralelas. Depreende-se então que só se regressa às origens, fazendo o caminho do futuro, quando nos encontramos a nós próprios no caminho, pela fidelidade e densidade das nossas memórias.

Nos temas mais importantes desta saga, Ulisses prefere manter a sua natureza humana quando recusa a imortalidade dos deuses oferecida por Calipso. Sabe que será como ser humano, experienciando e dominando emoções e desejos, que deverá evoluir e poder seguramente encarar o que o futuro lhe traz. Ultrapassa as ilusórias promessas dos inebriantes e “límpidos” cantos das sereias, amarrando-se à verticalidade dos seus princípios e à solidez da sua Vontade e Intuição (o mastro), continuando assim imperturbável na orientação aos seus companheiros (a humanidade a quem fará assim divisar outros horizontes), os quais, entretanto surdos aos cantos das sereias e ao conhecimento do passado e do futuro, à força de remos (os impulsos do veículos energéticos do animus vindos do tempo futuro que se fazem presente), ultrapassam os eventos antevistos (já presentes no futuro como probabilidade) pelos poderes sobrenaturais de Circe, a deusa que revela o estado evolutivo de cada um.

Somos conduzidos a uma ideia de Tempo que se desenvolve da eternidade – o futuro para o presente. Que é possível no entanto moldar, voltar atrás, fazer parar ou controlar a velocidade dos acontecimentos presentes, voltando a religar passado e futuro e que conduzirão o presente a outra versão. Enfim, um mundo de probabilidades!

“As Sereias e Ulisses" é uma pintura a óleo sobre tela de grande dimensão do artista inglês William Etty, de 1891.

https://www.greeka.com/ionian/ithaca/myths/odysseus/. Fonte: Creative Commons.


Na vida há que tomar opções, algumas muito difíceis, na escolha das bifurcações que a estrada apresenta. Circe avisa Ulisses da existência de dois rochedos (portais no mundo material dos homens) que representam o acesso aos mundos duais (inferno e céu, Niflheim – a terra das neblinas e Asgard na mitologia nórdica), dos quais “um deles chega ao céu com o seu pico pontiagudo e cobre-o uma nuvem azulada” e nela reside numa caverna (o submundo) o monstro Cila de seis cabeças; o outro “nele há uma grande figueira com frondosa folhagem” (a Árvore da Vida), onde reside a divina Caríbdis que três vezes ao dia suga e vomita água escura com barulho terrível “como um caldeirão por cima de um grande fogo”, e do qual se deverá afastar definitivamente, “pois é preferível lamentares a morte de seis companheiros do que lamentares a morte de todos”. As seis cabeças de Cila e as três turbulências de Caríbdis parecem perfazer os nove mundos do freixo Yggdrasil, o eixo do mundo da cosmologia nórdica.

 Um dos submundos aparenta conduzir ao céu, contudo é um céu sempre nublado que nunca está limpo, que obriga a Consciência adquirida e o repositório das Memórias (akáshicas) a decidir pela sua escolha, pois será sempre um mal menor na preservação de um futuro para a vida e no caminho que o herói tem ainda a fazer. Caríbdis não é ainda opção com as suas turbulentas águas escuras onde se depuram as almas no “grande fogo”que chegam assim ao fim da caminhada.

Yggdrasil, a árvore que liga os céus com o submundo - os 9 mundos da mitologia nórdica.

Fonte: Creative Commons


 O conselho é ceder aos deuses imortais para quem o Tempo é eterno, em vez de empunhar armas, recursos de Maya, perecíveis e efémeros, antagonizando-os. Face ao vector imparável e direccional do Tempo na nossa dimensão de mortais, as escolhas deverão ser orientadas pelo recurso à Razão e à Vontade, abandonadas as paixões e dominados os impulsos naturais quase sempre próprias dos momentos presentes impensados.

As memórias neste trajecto ganham importância, pois a Odisseia mostra-nos que é a memória de Ulisses, relembrando os avisos passados de Circe e dos oráculos de Tirésias, que o salvam ao aportar à ilha do Sol (Helius) onde Zeus, deus solar, traça definitivamente o seu destino e o dos seus companheiros. Tanto os avisos de Circe como de Tirésias, o anúncio e antevisão de um futuro probabilístico, são o “cone de luz” ou a linha do tempo que delimita e guia, servindo de orientação: o passado e o presente, construídos no futuro.

 

Entre nós, Fernando Pessoa na Mensagem, também através de Ulysses, universaliza o mito ao nos avivar e reforçar a memória do passado, religando, os acontecimentos históricos ligados às nossas origens como país com o futuro que se há-de realizar. Assim como foi o troiano Eneias na fundação de Roma, os mitos por detrás da fundação das nações com matizes messiânicas dos deuses solares, suportando lendas que se tornam realidade. Também reflectem as viagens interiores pessoais, as odisseias, que as almas individuais levam a cabo no seu casulo material e na orbe terrestre.

O mito é o nada que é tudo.

O mesmo sol que abre os céus

É um mito brilhante e mudo –

O corpo morto de Deus,

Vivo e desnudo.

 

Este, que aqui aportou, (1)

Foi por não ser existindo.

Sem existir nos bastou.

Por não ter vindo foi vindo

E nos criou.

 

Assim a lenda se escorre

A entrar na realidade.

E a fecundá-la decorre.

Em baixo, a vida, metade

De nada, morre.


Ulysses, Fernando Pessoa

Notas

(1) Acredita-se que Lisboa deriva de Olisippo e Ulixbona raiz do nome de Ulisses ou Odisseus.

 

Bibliografia

A Odisseia de Homero, Frederico Lourenço, Livros Cotovia, 12ª  Edição.

Mensagem, Fernando Pessoa, Porto Editora, 2016.


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