por João G. F. Porto
Hermes Trismegisto ou Hermes, acredita-se ter sido um sábio que viveu no Egipto antigo (cerca de 1300 a.C. considerado como contemporâneo de Moisés), o Três Vezes Grande, sendo esse o nome dado pelos neoplatónicos ao deus egípcio Toth, que é identificado com o deus grego Hermes.
Após a conquista do Egipto por Alexandre, o Grande, que acabou levando a uma miscigenação entre costumes gregos e egípcios, este nome pretendia assimilar Hermes / Mercúrio, o deus greco-romano da comunicação e mensageiro dos deuses, a Toth, o deus egípcio das letras, dos números e da geometria, um deus de sabedoria e erudição. O epíteto egípcio “Três Vezes Grande” deu origem à expressão grega Trismegisto, que surgiu pela primeira vez em inscrições encontradas em Akhmim no Alto Egipto, datadas de 240 d.C.
Os gregos desde o tempo de Heródoto e mesmo antes acostumaram-se a atribuir a Hermes Trismegisto os escritos do deus egípcio Toth. Em certa medida, todos os escritos egípcios traduzidos para o grego e depois para o latim que fossem atribuídos a Hermes Trismegisto, mesmo que isso não fosse a realidade, conseguiam algum destaque para autores menos conhecidos. Um escrito ganharia mais peso se manifestasse a sua origem revelada do saber sagrado e secreto de Hermes Trismegisto. Foi assim que nos chegaram as primeiras referências duais a Hermes Trismegisto. Enquanto os primeiros representavam doutrinas filosóficas sérias provindas de escolas neoplatónicas (exemplo de Ammonio Saccas, Plotino), comprometidas na busca da “verdade”, os segundos relacionavam-se com as pseudociências da astrologia, magia e alquimia.
Esta dualidade revelar-se-ia de forma consistente após a Idade Média nos princípios do Renascimento onde a procura de manuscritos antigos da literatura remanescente da Grécia antiga pelos estudiosos humanistas ocidentais foi apoiada por exemplo pela criação da Biblioteca Laurenciana de Florença, por Cosme Médicis (1389 – 1464) para acolher o saque de Constantinopla e que continha já 3000 manuscritos quando abriu ao público em 1571.
Marsílio Ficino (1433 – 1499) no papel de tradutor de Cosme, reunia os manuscritos do Diálogo de Platão, cujos escritos eram quase desconhecidos na Idade Média e onde imperava o pensamento Aristotélico, mas que agora sob o auspício financeiro dos Médicis, Leonardo da Pistoia descobria um outro manuscrito num mosteiro macedónio escrito por Hermes Trismegisto, datado de 1300 a.C., ao tempo do êxodo de Moisés do Egipto, acreditando-se estar na base da formulação da filosofia platónica. Nada mais do que o Corpus Hermeticum!
A sua tradução do grego antigo para o latim teve um impacto muito grande, gerando uma volumosa literatura de comentários e discussões em parte devido à reformulação dos conteúdos relativos a magia, alquimia e astrologia de modo a serem adaptados e deste modo aceitáveis pelo cristianismo. De tal maneira que o próprio Papa Alexandre VI (1431 – 1503) mandou decorar os seus aposentos privados no Vaticano com figuras astrológicas onde era incluído a própria figura de Hermes Trismegisto em conversa com Moisés e com a deusa egípcia Ísis.
Foi assim que se desenvolveu o designado esoterismo ocidental com Marsílio Ficino e Giovanni Pico della Mirandola, um sincretismo de hermetismo, neoplatonismo, cabala, tradições mágicas que passaram da Idade Média ao Renascimento e do cristianismo no século XV.
Contudo em 1614 Isaac Casaubon (1559 – 1614), um protestante francês exilado na Inglaterra, refutava o mito criado pelas traduções para o grego/latim em torno do Corpus Hermeticum, revelando erroneamente ser uma falsificação, o que provocou um enorme embaraço e o afastamento progressivo dos intelectuais e estudiosos da sua leitura e interpretação.
Esta situação motivada pela falta de outras provas que pudessem consubstanciar a natureza verdadeira do Corpus Hermeticum viria a dar uma volta de 180 graus quando em 1945 são descobertos, por dois irmãos vivendo no Alto Egipto na localidade de Nague Hamadi, 13 códices manuscritos em papiro envoltos em couro num pote de barro selado, numa gruta calcária na base de um penhasco chamado Djebel El-Tarif. Os códices continham textos sobre cinquenta e dois tratados na sua maioria gnósticos, além de incluírem também três trabalhos pertencentes ao Corpus Hermeticum e tradução/alteração parcial de “A República” de Platão. Esta descoberta da maior importância viria a confirmar de forma definitiva e categórica a autenticidade do Corpus Hermeticum e de Hermes Trismegisto.
Depois de muitas atribulações sofridas por estes manuscritos, encontram-se hoje depositados no Museu Copta do Cairo tendo sido declarados Tesouro Nacional Egípcio. Em 1970 foi constituído pela UNESCO e o Ministério Egípcio de Cultura, o Comité Internacional pelos Códices de Nague Hamadi. Com este acto foi assim dado o merecido reconhecimento científico a este espólio conhecido como a Biblioteca de Nague Hamadi. Posteriormente surgiram diversas edições em paperback em 1981, 1984, 1986 e 1988, esta última revista, completa e não adulterada, com o objectivo de divulgação dos textos gnósticos para o público em geral.
Ainda em 1995 os egiptólogos Richard Lewis Jasnow e Karl-Theodor Zauzich deram o nome de “O antigo livro egípcio de Thoth” a um conjunto de textos demóticos do Período Ptolomaico, reconstituídos a partir de papiros do século II a.C. sobre mais de 40 fragmentos e envolvendo um diálogo entre Toth e uma entidade designada por “ A-um-que-ama-conhecimento”. Este livro veio posteriormente a incorporar o Corpus Hermeticum bem como outros textos apócrifos.
Como entidade nascida no Egipto com outras designações, tais como Zehuti, Tehuti, filho de Seb e de sua irmã Nut, Thot/Hermes Trismegisto era o senhor do conhecimento mágico e dos segredos divinos colocados à disposição dos deuses e dos homens, o “senhor do heka” (magia) sendo esta certamente a fonte da relação da doutrina secreta com o conhecimento mágico.
Era também “aquele que separou as línguas de um país a outro” e “aquele que conta o tempo”, ou seja, o responsável pelas línguas egípcia e estrangeiras e pelo registo da passagem do tempo. Era tido como o escriba divino e criador da escrita, o que o associou ao deus Hermes pelos primeiros colonos gregos que se estabeleceram no Egipto, por volta do século VI a.C..
A primeira referência a um livro escrito por Toth talvez seja uma inscrição datada da XVIII Dinastia (1398 a.C.), encontrada em uma das estátuas do vizir Amenhotep depositadas no templo de Amon em Karnak. O texto sugere a existência de um livro que conteria os ensinamentos iniciáticos do deus, e que pode ser observado na inscrição: “Fui iniciado no livro do deus, vi as glorificações de Toth e penetrei nos seus segredos”.
Acredita-se que o próprio deus Toth teria deixado uma série de inscrições de carácter secreto ou hermético datado do Período Ptolomaico (III século a.C.) onde existiria uma descrição mais detalhada de um conjunto de textos iniciáticos escritos pelo deus Toth. De acordo com Clemente de Alexandria haveria 42 livros contendo todo o conhecimento necessário à humanidade, dos quais 36 conteriam a ciência dos egípcios e os restantes os conhecimentos de medicina, alquimia, astrologia e matemática. O deus Thot foi sempre associado aos aspectos presentes da cosmogénese, assim como às faculdades humanas relativas ao pensamento e ao conhecimento forçosamente ligado à escrita, sendo conhecido como “Senhor das Palavras Divinas”, dos hieróglifos, e das ciências. Representado tanto pelo babuíno e pela íbis com um Quarto Crescente de Lua no topo da cabeça (divindade lunar), tanto na forma animal quanto na híbrida. A primeira associada ao ofício do escriba e à veneração solar enquanto a segunda (forma humana com cabeça de íbis) associada ao seu aspecto de escriba divino, ao julgamento da alma, a Maat (a ordem cósmica) no seu aspecto lunar.
Os textos mais importantes atribuídos a Hermes Trismegisto são a Tábua de Esmeralda, os textos do Corpus Hermeticum e ainda outros textos apócrifos como o diálogo de Asclépio (o deus grego da saúde e da medicina) e que definem uma estrutura de pensamento filosófico conhecida como Hermetismo. A Tábua de Esmeralda, por ter sido gravada em uma tábua de esmeralda, é um dos textos mais conhecidos da literatura hermética e alquímica e teria fundado a alquimia árabe. A versão mais antiga encontra-se num tratado árabe do século VI, o Livro do Segredo da Criação, datado de 825 d.C.
Os princípios do Hermetismo poderão ser traduzidos em 7 axiomas, resumidos deste modo:
1 - Pensamento doutrinário simbólico assente no Princípio do Mentalismo: “O Todo é Mente; o Universo é Mental”.
2 - O homem como símbolo emblemático do mundo (relação microcosmo/macrocosmo) ou Princípio de Correspondência: “O que está em cima é como o que está em baixo e o que está em baixo é como o que está em cima”.
3 - A existência da “anima mundi” ou Princípio da Vibração: “Nada está parado; tudo se move, tudo vibra”.
4 - A teoria das correspondências entre níveis ou o Princípio do Género: “o Género está em tudo; tudo tem o seu princípio masculino e feminino; o Género manifesta-se em todos os planos”.
5 - A complementaridade dos opostos ou Princípio da Polaridade: “Tudo é duplo; tudo tem pólos; tudo tem o seu oposto; o igual e o desigual, são a mesma coisa; os opostos são idênticos em natureza, mas diferentes em grau; os Extremos se tocam; todas as verdades são meias-verdades; todos os paradoxos podem ser reconciliados”.
6 - A ascensão da mente individual à região da Grande Mente ou o Princípio do Ritmo: “tudo tem fluxo e refluxo; tudo sobe e desce; tudo se manifesta por oscilações compensadas; a medida do movimento à direita é a medida do movimento à esquerda; o ritmo é a compensação”.
7 - A vida como transmutação pessoal ou Princípio da Causa e Efeito: “Toda a Causa tem o seu Efeito e todo o Efeito tem a sua Causa; tudo acontece de acordo com a Lei; o acaso é simplesmente um nome dado a uma Lei não reconhecida; há muitos planos de causalidade, porém nada escapa à Lei”.
Estes princípios traduzidos nos sete axiomas do Caibalion (curiosamente a palavra tem a mesma raiz da palavra Kabbalah que significa “Tradição ou preceito manifestado por um ente de cima") corporizam a popularização da mensagem de Hermes Trismegisto e do Hermetismo actual. O livro Caibalion foi escrito no final do século XIX por três iniciados. Ao contrário dos outros, não é um livro oriundo da era pré-cristã como popularmente se crê. Foi Publicado pela primeira vez em 1908 pela Yogi Publication Society sob o pseudónimo de "Os Três Iniciados", afirmando conter a essência dos ensinamentos de Hermes Trismegisto, tal como ensinado nas escolas herméticas do Antigo Egipto e da Antiga Grécia. Crê-se que o livro teria sido escrito por William Walker Atkinson, pois para além de ser o proprietário da editora, publicava livros do mesmo teor sob diversos pseudónimos.
A influência de Hermes Trismegisto tem atravessado todos os tempos. Modernamente foi frequentemente citado no romance “O Pêndulo de Foucault”, de Umberto Eco, e seu nome também aparece no romance “Picatrix”, de Valerio Evangelisti, e em muitos contos e romances de H.P. Lovecraft. Poderá considerar-se, tal como opinou a historiadora Frances A. Yates, que os Hermetistas desempenharam um papel extremamente significativo no desenvolvimento da ciência moderna com o Renascimento. Na tradição clássica ocidental, calcada na antiguidade tardia, Hermes Trismegisto adquiriu o papel importante de uma lenda, um ideal de sabedoria a ser seguido, o fundador do conhecimento, o profeta da ciência, o primeiro dos sábios.
Contudo a tradição hermética faz recuar no espaço e no tempo as origens destes conhecimentos. Helena Blavatsky, no volume V da Doutrina Secreta, dedica a sua introdução a “provar que a chave de interpretação proporcionada pelas regras orientais indo-budistas de Ocultismo se adpta tanto aos Evangelhos cristãos como aos livros arcaicos egípcios, gregos, caldeus, persas e hebreus”. Afiança que “Ensinava Amônio Sacas que a Doutrina Secreta da Religião-Sabedoria estava toda contida nos Livros de Thoth (Hermes); onde Pitágoras e Platão, beberam os seus conhecimentos e grande parte da sua filosofia; e que esses livros eram idênticos aos ensinamentos dos sábios do Extremo Oriente»”.
Em nota de rodapé em Doutrina Secreta V, Secção IV, H. Blavatsky faz questão em transmitir-nos esta mensagem profunda e transversal: “Os escritos da antiguidade muitas vezes personificavam a Sabedoria como uma emanação auxiliar do Criador. Assim, temos o Buddha hindu; o Nebo babilónico, o Thoth de Menfis, o Hermes da Grécia.” Acrescentando de seguida que: “Na Doutrina Secreta do Oriente esta função auxiliadora encontra-se colectivamente nas primeiras emanações da Luz Primordial, os Sete Dhyan-Chohans, cuja descrição se identifica com os “Sete Espíritos da Presença” dos católicos romanos.”. Eis então o fio condutor espiritual da humanidade que perpassa por todas as civilizações e culturas. Hermes Trimesgisto foi uma das pérolas desse longo colar, apenas um dos Construtores (avatares) propiciadores de metamorfose e mutação, física e espiritual do Homem, uma versão de uma mesma Entidade.
Hoje em dia, o Hermetismo faz parte de programas de estudo de organizações internacionais dedicadas à filosofia tais como a Nova Acrópole, sociedades teosóficas espalhadas por todo o mundo, escolas e academias de filosofia, inspirando a adopção de estilos de vida consentâneos com o respeito pela dignidade humana, o amor à verdade e ao conhecimento e a garantia de um desenvolvimento harmonioso entre pensamento, sentimento e acção.
Bibliografia
James Hannam, A Origem da Ciência (God`s Philophers), Alma dos Livros, 2021.
Helena Petrovna Blavatsky, A Doutrina Secreta, Síntese de Ciência, Religião e Filosofia, Tomo V, Editora Pensamento, 2020.
Hermes Trismegisto, Corpus Hermeticum Y outros textos apócrifos, Arca de Sabiduria, Editorial EDAF, 2019.
Os Tres Iniciados, O Caibalion, Publicações Maitreya, 2018.
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