“… não sabemos onde começou este caminho; não sabemos de onde viemos.
Tampouco sabemos para onde se dirige o caminho; não sabemos para onde vamos.”
Délia
Steinberg Guzmán
Em Dezembro de 2017, a descoberta arqueológica de 27 estátuas em granito de Sekhmet (Sachmet, Sakhet, Sekmet ou Sakhmet) com dois metros de altura, na margem oeste de Luxor, em Kôm el-Hettan, no templo do faraó Amenhotep III (1390 – 1352 AC), situado a cerca de 3 quilómetros do Nilo e que abrange uma área superior a 385.000 metros quadrados, confirmou de uma vez por todas o papel importante e sempre muito pouco compreendido desta deusa egípcia com cabeça de Leoa.
Sekhmet
Museu Nacional de Copenhaga. Fonte: Wikimedia Commons
As razões pelas quais Amenhotep III se fez rodear destas inúmeras estátuas de Sekhmet permanece um mistério.
Eugénio Giesta, na sua dissertação de Mestrado em História Antiga sobre Bastet e Sekhmet (1), assim descreve o templo:
“Foi nos dois pátios peristilos do templo e em dois corredores ao longo dos lados este e oeste da estrutura que as estátuas foram colocadas, em alguns sítios em linha dupla, uma atrás da outra, agrupadas de tal forma que em alguns locais estavam mesmo em contacto, simetricamente e a tocar-se pelo cotovelo, parecendo um contingente preparado para o campo de batalha. Para além das estátuas sentadas, existiam ainda estátuas da deusa em pé, nas filas de trás, sem inscrições e com uma qualidade inferior.”
Segundo Dennis Forbes, eram em número de 730, que segundo algumas teorias, destinavam-se a apaziguar Sekhmet, num ritual realizado diariamente duas vezes, onde cada dia do ano era representado por duas estátuas.
Alguns dizem que se tratava de apaziguar esta deusa e de transmitir aos concidadãos egípcios a mensagem de que o faraó era seu protegido, dado que em algumas estátuas se encontra a inscrição “Amenhotep é amado por Sekhmet”. Estas suposições devem-se ao conhecido carácter comummente atribuído a esta deusa, de sanguinária, deusa da guerra e exterminadora da humanidade. Assim é, que no “Livro da Vaca Celeste”, cujo texto foi gravado nas paredes de diversos túmulos do Vale dos Reis, é referida como a “Poderosa”, ou o “Olho de Ren” ou RN (ou ainda Rá na língua inglesa), correspondente a Atma no oriente hindu, dado que este a gerou com a específica função de reprimir os homens que se tinham revoltado contra ele.
Enviada à Terra, a sua fúria massacrou os humanos rebeldes reduzindo-os a cinzas pelo fogo expelido pela sua boca – a potência do Verbo. A raiz da palavra vem de Sekhem, a forma masculina de Sekhmet, S-Kem, que significa queimar ou fazer queimar. Sekhmet é o fogo celeste. No fim, Ren teve que intervir com subtileza e estratégia para impedir que toda a humanidade fosse extinta.
De uma forma muito genérica a história estabeleceu que este é o suposto mito da destruição da humanidade, que envolve a génese de Sekhmet e a sua identificação com o “Olho de Ren”, estabelecendo-se assim a sua filiação ao deus solar.
Contudo a associação conceptual entre Ren e Atma leva-nos às origens da civilização do Vale do Hindu e a pensar que todas as mitologias lá tiveram o seu berço. Ren ou RN é formado por dois hieróglifos: o R, que é a boca, o Verbo, e o N, hieróglifo do Noun, representado pela água ondulada, ou seja, por um lado Ren, visto como nome próprio é gerador de todo a potência, através do Verbo é fundamentalmente um estado ondulatório, a frequência que tudo gera. Sekhmet sendo a forma feminina de Sekhem ou o Budhi hinduísta, é a procriadora em potência, um dos princípios da manifestação. Por esta razão o hieróglifo que representa Sekhem é um ceptro real ou a clava que o faraó usa para impactar as forças adversas.
Mas este é apenas um dos aspectos da verdadeira natureza de Sekhmet, que afinal é dual. Contrastando com o carácter sanguinário e irredutível, ela apresenta ao mesmo tempo uma personalidade doce e pacificadora, surgindo então com a cabeça de uma gata e na forma da deusa Bastet. Algumas estatuetas retratam ambas as formas de Bastet, como uma mulher com cabeça de leoa acompanhada por uma pequena figura de uma gata doméstica. Lembremo-nos que os leões viviam caracteristicamente nas margens do deserto, passando a ser considerados guardiães dos horizontes a oriente e a ocidente, os locais do nascer e do pôr-do-Sol. O lugar do leão esteve assegurado desde cedo a partir do Império Antigo quando o faraó e o leão se fundiram num símbolo icónico – a esfinge.
Sekhmet muitas vezes surge, para além desta dualidade, fazendo parte de uma trilogia ao lado da deusa Hathor, que alberga simultaneamente os dois aspectos, ameaçadora e maternal, perigosa e sedutora, harmonizadora de polaridades, “Senhora do Caminho”. Era assim, que no fim das campanhas militares eram produzidas diversas evocações Sekhméticas para marcar o início da paz e da justiça.
Nos livros do Além do Império Novo, o “Livro de Amduat”, o “Livro das Portas” e o “Livro dos Mortos”, é frequente a representação da gata doméstica a destruir uma serpente (Apófis), com recurso a uma faca ou com as suas próprias garras. A principal característica de um leão eram a força e a ferocidade e a da gata doméstica era a afectuosidade, a brincadeira sagaz e sobretudo as suas qualidades maternais.
Encontramos noutras civilizações esta trilogia, onde o próprio triângulo evoca a ideia de três princípios, da Trindade tão própria da tradição proto cristã, mas também veiculada pelo Trimurti indu formado por Brama (criador), Vishnu (conservador) e Shiva (destruidor), ou na Pérsia com Ormazd, Vohu Mano e Asha Vahista.
No Egipto as trilogias desdobram-se de acordo com os centros iniciáticos: a tríade Menfita composta por Ptah (o fogo da Terra), Sekhmet (aqui como esposa de Ptah) e o seu filho Nefertum ou a Tríade Tebana com Amon, Mut e Khonsu ou ainda a Osiriana com Osíris, Isís e Hórus.
Simbolicamente Sekhmet incorpora esta trindade, representando a primeira manifestação, o interface entre as dimensões superiores com as manifestações materiais. Como “Senhora do Caminho” indica-nos o Dharma, a ascensão/retrocesso cíclicos regulados pela Lei de Causa e Efeito, onde o ser humano é filho da Consciência (RN e das hierarquias celestes) e das suas obras duais (Hathor: positivas/negativas). Em conclusão: o Karma em acção!
O Ser Humano na sua forma peregrina, tal como um Khepri – o escaravelho que enrola a bola de estrume (simbolicamente tido como o Sol) e nela ao depositar os seus ovos, dela renasce, é a encarnação do próprio Sol (Rá ou RN) que no Caminho vai lapidando a sua Consciência no fogo, éon após éon, adoptando configurações materiais sempre diferentes, simultaneamente conflituosas mas complementares, tal como Sekhmet. Um ritual que se repete e plasma arquétipos: “Um ritual não se limita a repetir o ritual precedente – que é, ele próprio, a repetição de um arquétipo –: ele é-lhe contíguo e continua-o, periodicamente ou não”. (2)
Algumas lições da deusa, a deusa
das múltiplas faces, que tinha atributos simbólicos o Ankh, um ceptro de cana de papiro, um disco solar na cabeça, uma
faca e por vezes um iaret na cabeça
(a serpente símbolo de autoridade divina):
I – Como porções fractais, somos fenómeno
local de simetria dualista, pequenos espelhos da Consciência não-local. O
Universo é alvo de um foco ascensional evolutivo - a ascese Dharmica, a iaret (do grego οὐραῖος, ouraîos –
levantada na sua cauda, protectora do Caos) e, nele a matriz globalmente partilhada
da Consciência forma uma rede de nodos - o Akasha:
a “Senhora do Caminho” com o ceptro feito de canas de papiro - onde tudo é
registado e quase sempre figurado em Hathor e Bastet.
II – O passado, o presente e o
futuro fazem parte da mesma linha de perturbação circunstancial, a colheita
depende da sementeira. O Fogo solar de Rá que tudo vivifica e regenera: o Ankh de Sekhmet, símbolo da Vida. Tudo é
movimento e mudança cíclica. A potência e o esforço “do aqui e agora” são o
mais importante porque definem os vectores de perturbação, sempre em modo retroactivo,
dos cenários futuros: O disco solar na cabeça de Sekhmet a Luz de Rá que tudo
queima, a faca, a Lei de Causa e Efeito.
Sekhmet sendo a deusa das múltiplas faces, representa o caminho a percorrer pelo Ser Humano e as suas inúmeras máscaras que adopta a cada experiência de vida, onde da dualidade da guerra interior, feita de reveses e de conquistas, surge o equilíbrio, o caminho do meio e a ascensão da Consciência a patamares superiores.
Sekhmet surge na cosmogonia egípcia como razão do afastamento da raça humana dos arquétipos de Bondade, Beleza e Justiça. Ren (RN) ou Ré tem o poder do Verbo que transfere ao gerar uma trilogia de acção, Sekhmet, Bastet e Hathor – os mesmos milenares princípios védicos, os Trigunas Rajas, Tamas e Sattva, a relação dinâmica circular de estados que reconduz a humanidade ao Caminho. O tempo circular ou cíclico próprio de todas as cosmogonias é reflectido na cadência anual das inúmeras festividades religiosos egípcias, e aliás de todos os outros povos, imprimindo momentos de regeneração e de conciliação com as forças naturais do Cosmos.
Os deuses Ptah e Sekhmet ladeiam o rei, Ramsés
II, que assume o papel do seu filho Nefertum. Fonte: Wikimedia
Commons
“Ó Sekhmet, mais divina que
os deuses, mais gloriosa que a Enéade, senhora da luz, cujo lugar é preeminente
na cabeça do teu senhor! Vem à imagem viva, ao falcão vivo! Afasta-o de todas
as doenças, de todas as flechas nefastas, de todas as febres perniciosas, para
que eles não entrem nele, porque ele é Atum na noite, que não pode morrer para
toda a eternidade”. Textos de Edfu (3),
Invocações a Sekhmet.
Em Edfu se perseverou a antiga sabedoria e as ciências sagradas, morada
terrestre do deus Hórus, o Antigo, ou o deus Falcão marido de Hathor e
manifestação de Ré, espaço sagrado e centro do Mundo, local de criação e
manifestação do Cosmos.
Não poderíamos deixar de referir a bela cosmogonia egípcia que em Edfu
confirma, sob a capa simbólica das inscrições nas suas paredes, em acordo com
Toth – o deus da escrita hieróglifica, que do oceano primordial Nun, brotou a
primeira montanha, onde pousou o Falcão, o deus Hórus que então procede à
criação do Cosmos.
Das águas onduladas do oceano, símbolo de vibração, surge a matéria
(montanha) onde Hórus aliando as asas do Falcão (espaço) com o disco solar
(energia), imprime através das forças da dualidade (Sekhmet versus Bastet)
agora conjugadas em Hathor, com o seu templo complementar em Dendera, a ordem
(o Templo), aniquilando o Caos (o deserto), esmaga a serpente Apófis, abrindo
caminho a que Ré na condução da barca solar, faça diariamente renascer o Sol no
horizonte. Muito bela a conjugação dos aspectos geográficos do Egipto e das
inundações cíclicas do rio Nilo, da sua fauna e flora, bem como dos inerentes
aspectos da vida agrária do seu povo (a ligação da ciclicidade do dia-a-dia ao
sagrado), com a transmissão da antiga sabedoria sagrada sob forma de um
profundo simbolismo só decifrada e percebida pelos altos sacerdotes.
Assim se reflectiam também os arquétipos, consolidados na simbologia
hermética hieroglífica de Toth, da sabedoria sagrada, que só os egípcios
souberam transmitir e fazer sobreviver durante milhares de anos, chegada até
nós, ignorantes e amnésicos.
Notas e bibliografia
(1) Eugénio José Castro Giesta, BASTET E SEKHMET: ASPECTOS DE NATUREZA
DUAL, UNIVERSIDADE DE LISBOA, FACULDADE DE LETRAS, DEPARTAMENTO
DE HISTÓRIA, 2019.
(2) Mircea Eliade, O Mito do Eterno Retorno, Edições 70, Abril 2019.
(3) Edfu, onde prevalece o antigo templo dedicado a Hórus (237 e 57 a.C),
é a antiga Djebat ou Behedet, que na época Greco-Romana era conhecida como Apollonopolis
Magna, na margem ocidental do Nilo, em pleno Alto Egipto.
João Porto e Ponta Delgada, 13 de Junho de 2023
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